Tiramisù
Você sabe cozinhar? Foi a última pergunta da noite, até entrar no silêncio profundo do apartamento. Chovia como da primeira vez que saíram. Estavam de moto e chegaram encharcados no restaurante que ele havia escolhido. Riram da situação enquanto os demais clientes os observavam com certa curiosidade. As mãos não se tocaram naquela noite. Sentaram-se um de frente ao outro, como quem acaba de se conhecer. Haviam se perdido por um tempo até se reencontrarem de modo casual, que poderia ter sido na estação do metrô, na calçada ou elevador. Voltavam de outros amores, se avistaram de longe, quase sem perceber a inexistência do tempo. Você estava aqui e de repente foi embora. O que fez nessas horas? Eu aprendi italiano e fiz aquela viagem à Treviso, lembra? Vendi meu aquário. Estudei teatro e dança, coisas que você vivia dizendo que me deixaria mais solta, embora adorasse minha timidez. Doei meus livros de administração, curso que nunca vou terminar. Agora sou terapeuta holística. Escolhi minha nova vizinhança e vivo no perfeito anonimato. Ninguém estranha meus amigos que chegam nas horas mais inesperadas. É meia-noite e o sono não vem. Começa a contar as horas que a separam do novo aroma da casa: de carne defumada e temperos apimentados, misturado ao adocicado do licor. Na cozinha prepararia cada momento a ser saboreado. Os antepastos, as saladas e os molhos que aprendeu na Itália. O vinho de reserva. Tiramisù, receita da paciência, como sobremesa: biscoitos champagne embebidos em café, entremeados por creme à base de queijo mascarpone e polvilhados com cacau em pó. “Che ti tira su”. Não seja bobo, claro que sei cozinhar. Pode vir.