UM ROSTO NA ESCURIDÃO - PARTE II

O canto do galo pegou Eugênia contemplando a lua pela janela de seu quarto entreaberta. Imaginava o longe e pensava um dia conhecer o mundo até então somente imaginado nas palavras da sua mucama que atravessou um dia o oceano e conheceu o Rio de Janeiro. Elas se afeiçoaram de forma que se cuidavam como mãe e filha. O violento pai jamais ousara levantar a mão ou a voz para ela.

Adolfo já estava saindo daquela casa e se ausentando por quase um mês. A menina praticamente já estava curada. Ontem fez a última visita e deu o diagnóstico que o pai ansiava:

__ Já não tem mais nada. A menina está completamente curada.

Naquela noite houve um jantar e o noivo foi o convidado especial. Sem doença, Eugênia estava livre pra poder assumir o casamento e honrar o compromisso do pai feito com o amigo de infância, que hoje descansa na eternidade.

Dezoito horas

Família reunida à mesa rezando a Ave-Maria. Estêvão:

__ Senhor Jesus, nesse dia agradecemos o alimento que nos sustenta, a terra que plantamos e o trabalho que nos dá dignidade. Obrigado Jesus pela cura de Eugênia. Hoje prometo fazer uma doação à igreja pelo fim de sua moléstia. Que nos conceda saúde e paz!

Assentados, antes da comemoração, o pai oferece a menina em casamento, oficialmente. Tímida, Eugênia tenta esboçar um forçado sorriso que não convence ninguém. Um silêncio comprometedor domina o ambiente. Algo estava diferente do habitual. Antes, incontestável, agora uma repreensão ao evento prometido. O que se passara com a menina era a grande dúvida dos presentes e que causou um certo desconforto no noivo. Sorrisos disfarçados evidenciavam o constrangimento que também pouco importava. Afinal o compromisso havia sido firmado há anos e ninguém contestava estas atitudes.

A insônia pegou Eugênia de surpresa. Ela que geralmente dormia como um anjo, cedo cedo, viu a lua circundar por todo o céu e contemplou a viagem que as estrelas fazem todos os dias. Havia mais de uma perturbação em sua tenra alma que a consumia como a lava de um vulcão. Pensava e pensava, planejava e desplanejava. Vivia um tormento, mas um tormento que não lhe provocava em verdade uma angústia, mas sim, uma ansiedade que lhe deixava com vontade de sair gritando e correndo pelas ruas da pequena cidade e dizendo a todos que rompia com as tradições de sempre, que queria escolher a quem amar. Tímida, obediente, como todas as mulheres de seu tempo, Eugênia tinha apenas a alforria do pensamento, ainda uma caixa de segredos. Era escrava dos costumes, cativa das tradições e prisioneira dos sentimentos que sempre tiveram mas que nunca se podiam manifestar. Sua enfermidade a deixara mais vulnerável e sensível. Prometera a Deus obedecer sempre ao pai. Mas isso doía... devia amargar e sufocar seus sentimentos. Eram gritos que ecoavam junto aos ventos ignorados das madrugadas, enquanto contemplava aquele rosto em sua mente gravado e observava de sua janela o seu mundo possível. Murmurava para o infinito, juras eternas e assustava-se com a avalanche que haveria de vir, talvez a desmoronar sua existência.

Em suas longas noites, às vezes ouvia gemidos e lamentos vindos da senzala. Nada mais. O som que ecoava em sua mente eram os gritos que saíam de si mesma. Sabia do seu amor impossível e que nem ao menos devia estar ousando sonhar, tal qual uma flor que nasce no inverno e jamais poderá contemplar um jardim. Vive invernos constantes.

A cada dia Paulo se aproxima mais. Frequenta quase que diariamente aquele casarão, com o consentimento de Estêvão para que se estreite a relação com a menina. Bernarda é a única que sabe seu segredo. Escrava, acostumada a todo tipo de sofrimento não ligava muitos para os preconceitos da hipócrita e moralista sociedade em que vivia. Mas sabia, no seu coração de quase mãe que Eugênia estava condenada ao sofrimento. E seria silencioso. E seria doloroso. E seria impossível.

Do outro lado alguém também observa o espaço. Mas não sonha. Apenas sorri lembrando-se daquele olhar que entre uma multidão cruzou com o seu. Dormia tranquilamente sentindo um perfume que poderia ser o dela, uma sensação de frescor que lhe poderia vir de seus abraços e carícias. O silêncio a noite emoldurava seu corpo esculpido, ao frescor do vento e à luz das estrelas. Deitado ao chão respira o ar que em seus pulmões revigora a paixão acesa naquele dia, nascida em meio a uma multidão de olhares ansiosos que só viu os seus. Vez ou outra se pegava sorrindo, discretamente ao lembrar-se da menina misteriosa. E ficava a imaginar segredos, a imaginar aquela linda casa por dentro, aquele luxo tão distante de sua vida e aquele amor inalcançável, tão distante quanto a Lua, tão inacessível como o Sol.

Passou frente à rua de Eugênia, olhou as janelas. Fechadas. Sempre fechadas. O quarto da menina ficava aos fundos, moça protegida, intimidade guardada. A casa tinha dois andares. Como ela, mais duas construções apenas na cidade, públicas. Era a família mais rica. Uma porta azul, em madeira pesada abria para um corredor que dava na sala de recepção, seguida da de jantar e cozinha. Ao lado dois quartos usados pelo pai para o trabalho. Na parte superior, os quartos, todos com janelas de vida encoberta por cortinas trabalhadas e bordadas, e quando abertas, treliças de madeira protegiam seu interior dos olhares curiosos. Eram azuis como a porta, contrastando com o bege das paredes. O quarto de Eugênia ficava na parte leste da casa, era a terceira janela que vem descia a rua Direita. Parou diante dele e ficou a observar uns instantes. Não a viu. Bernarda observou a rua da cozinha e franziu a testa pensando:

__ Meu Deus, protege minha menina!

Naquele momento, pouco antes do almoço, Eugênia brincava com sua caixinha de música vinda da França e pensava. A cena começou a se repetir numa frequência preocupante. Todas as vezes que aquele olhar vagava por aquela janela a escrava coçava a cabeça e ficava observando, obediente. Um dia, não mais aguentando, confidenciou:

__ Sinhazina, olha, eu não tenho nada com isso não, mas eu não to mais podendo ver você sabe quem passando pela rua todo dia.

Coração de Eugênia disparou.

__ Quê Bernarda? Eu nunca vi... É verdade?

Eugênia estava eufórica. Com a mucama ela era ela. Naturalmente, sem retoques. Era a única que enxugava suas lágrimas e ouvia amedrontada suas confidências. Explicou o perigo que ela corria, falou da promessa do noivado, do trato com o falecido sogro, da brutalidade do Paulo.... e assim foi tecendo sua ladainha de tragédias possíveis e imagináveis que viria de um possível rompimento desse casamento. E além do mais, tinha uma outra série de inconveniências que a sociedade tão tradicional não iria entender. Nem suportar.

A menina pareceu surda a todos os apelos. Estática, seu pensamento viajou mundo inteiro e chegou até a lua... suspirou profundamente e disse com voz apaixonada:

__ Verdade?

No largo da Piedade alguém contemplava as torres da igreja com nuvens ao fundo, cobrindo parte do azul do céu daquela primavera. Ousara demais. Decidiu que não mais iria passar por aquela rua e que continuaria levando sua vidinha simples, sem maiores preocupações e deixando a vida correr tão simplesmente como o riacho que corta a cidade. Tão somente.

E a menina insistiu, insistiu e insistiu até que a escrava mãe lhe contasse tudo. E contou-lhe quem era, onde vivia, o que fazia e advertiu novamente mais um milhão de vezes:

__ Fica longe menina, é problema. Se o senhor seu pai fica sabendo ou o Paulo, meu Deus do céu...

Mas Eugênia era menina das letras. Havia aprendido a ler, capricho que o pai concedeu por medo de ver a filha tão frágil morrer jovem e lhe restar um pesado remorso. Mais um. E tocava piano com uma graça que em dias de festa, sempre abrilhantava um jantar ao som de músicas sacras. Amava música gregoriana. Com todo o esforço e jeito próprio de menina carente, com aquele olhar de piedade, Eugênia foi arrancando o que pode sobre aquele olhar que cruzou o seu e atingiu-lhe internamente no mais profundo de sua alma inquieta.

Queria mais. Queria enviar um bilhete. Mas que ousadia. Nunca que Bernarda iria permitir. E nada disso deveria estar acontecendo. Paulo tornava suas visitas mais frequentes. Ia quase todos os dias conversar e se aconselhar com Estêvão, a quem tinha admiração filial. Sempre via Eugênia, agora sem cobertura no rosto, que era uma proteção em virtude de sua moléstia. Era brilhante e alvo seu rosto. Os cabelos negros desciam ondulados bem abaixo dos ombros. Gostava de vestidos brancos apertados aos braços e rodado, como de costume. Era de um branco mutilador de olhares. Rosto rosado, a menina encantava quem quer que a olhasse. Mas sua conhecida timidez pública lhe fazia baixar os olhos acompanhado de um sorriso discreto. Só com Bernarda a menina falava mais alto, e sonhava, e falava, e dizia, e falava e coisa e tal.

Ultimamente Paulo sentia a menina arredia. Por vezes não o quis cumprimentar nem ao menos descer as escadas. Sempre dizia estar indisposta, e mesmo quando doente nunca fugia à presença do futuro marido. Coisa de moça crescendo, dizia o pai. Paulo percebia que algo estava diferente desde aquele último jantar. Eugênia parecia pensar por si mesma. Em longas noites ele imaginava que talvez ele não a agradasse. Era rude, como o sogro, sempre conversando alto, de arranque e com voz impositiva, típico dos homens do sertão, machistas e que pensavam que mulher não devia saber ler. Nunca gostou dessas coisas em Eugênia.

Paulo também observava a donzela. Entranhava-lhe esse comportamento. Houve uma semana que ela não desceu um só dia. Foi a única vez que seu pai ralhou-lhe. Ela precisava ser mais atenta, caso contrário se Paulo desistisse ela ficaria desonrada. E que Deus livre qualquer família de algo assim.

Numa tarde de domingo, enquanto Bernarda preparava o jantar olhou pela janela que dava para a rua. Lá estava a olhar para o quarto da menina. A mucama apenas balançou a cabeça e parecida entender que isso ainda ia longe. E dessa vez Eugênia também viu. Havia dias que ela ficava à espreita, esperando. Não ousou sair à janela, mas, quando percebeu o olhar em direção ao seu quarto, abriu a parte externa de madeira e deixou apenas a cortina suave a balançar com o vento. E alguém ficou alguns minutos observando e se foi em sorrisos.

Bernarda percebeu algo mesmo lá da cozinha, coçou a cabeça, depois ergueu as mãos postas ao alto e implorou:

__ Minha Nossa Senhora do Rosário, meu preto velho, olhai essa menina e lhe dê juízo.

Tarde demais. Todos os dias, às dezessete horas em ponto alguém circulava, olhava e ia embora. Paulo vinha sempre em seguida, mas nunca viu a repetida cena.

Segunda-feira, Eugênia havia escrito um bilhete e estava na sala de visitas às dezesseis e trinta. Não demorou muito quando ouviu passos lentos. Quando alguém olhava para cima, a menina bateu na janela, percebeu que havia chamado a atenção e pôs o braço para a rua, deixando cair o recado. Retornou rapidamente antes que fosse notada. Coração disparava, assustadoramente. O bilhete havia sido recolhido.

Encontre-me amanhã, terça-feira, às onze da noite na estradinha atrás da matriz.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 09/11/2014
Código do texto: T5029001
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