Um suposto anjo (cont. Camafeu)

Pelas próximas duas semanas, não a encontrou mais. Na madrugada anterior terminou o livro, mas já havia começado uma outra história, sobre uma mulher e um camafeu. Além disso, suas poesias diárias no guardanapo da cafeteria agora sempre trazia palavras como vermelho, efêmero, anjo, mistério, etc. Começou a preocupar-se com ela ter se tornado sua maior inspiração, mas não fazia maior objeção aos seus dedos batendo no teclado ou escrevendo pelo papel.

Ninguém

Lembra nada do antes

Nem sabe nada do depois

Desse intervalo efêmero de tempo

Que chamam de vida

Rodeada de sangue escarlate

Por tempo indefinido olhou cada pessoa que passou pelas portas do café sabendo que em cada uma havia um milhão. De pensamentos, desejos, amores, momentos, lágrimas, sorrisos, pecados, medos, esperanças, segredos e histórias. Só não sabiam quais eram. Só imaginava que isso podia fazer com que se sentisse um pouco menos só sentado à mesa. A solidão não era mal vinda, mas naquele dia estava trazendo seus nervos à flor da pele.

Olhou ao redor e deparou-se com um jovem carrancudo, a testa vincada, o olhar triste. Sabia que aquele olhar era assim distante, mesmo e talvez principalmente, quando tinha que sorrir. Conhecia o milhão que neles habitava. Suspirou e desviou os olhos do seu reflexo no espelho da parede. A porta abriu, um leve perfume de rosas entrou e o sorriso que veio foi a excessão de seu olhar carrancudo.

O vestido branco ia até o meio da coxa, a partir de onde se via a meia calça e por fim sapatilhas que pareciam de bailarina. O cabelo estava preso em uma trança de lado, mas a maior parte dos fios escapara e ela precisou afastar das bochechas rosadas enquanto sentava sozinha na mesa ao lado da dele, perto da porta. Fez o pedido e ele percebeu como sua voz era doce, não conseguindo mais desviar. Quando a garçonete se afastou, a garota olhou em sua volta com atenção, por fim encontrando o olhar dele e, por alguns segundos, nenhum dos dois desviou, até que ambos olharam para baixo, desconcertados.

Ela olha mais uma vez, e outra, sempre cruzando o olhar com o dele e prendendo-o por alguns segundos.

- Posso sentar?

Ele havia levantado e perguntou com a voz meio falha, já segurando a cadeira na frente dela, que sorriu e assentiu.

- Marina.- apresentou-se

- Daniel.

Eles sorriam um para o outro, sem desgrudar o olhar. A bebida chegou e ela começou a colocar o açúcar. Uma, duas, três, quatro vezes.

- Hipoglicemia.- ela explicou, percebendo o olhar dele acompanhando cada movimento.

- Mas você tá se sentindo bem? Tipo, agora?

Fez que ia levantar para ajudá-la, mas Marina segurou sua mão na mesa para impedir. Ele parou, e ela deixou a mão ali, tentando parecer casual, mas ficou vermelha.

- Eu vou ficar bem- ela deu um gole grande na bebida- Mas obrigada.

Daniel continuou olhando por algum tempo, preocupado. Então bebeu um gole do próprio café, que já estava quase frio. Pensou mais uma vez no quão doce era a voz da garota à sua frente. Ela tirou a mão da dele, devagar, e segurou o queixo no punho fechado, encostando o cotovelo na mesa.

- Então, Daniel. Tenho uma coisa para te contar. Sei que você que sentou aqui, então talvez tenha algo a dizer. Mas deixe-me começar. -ela fez uma pausa- A dona dessa cafeteria é uma amiga minha. Ela sabe o quanto eu adoro poesia, e há umas duas semanas, começou a encontrar poesia aqui, escritas nos guardanapos por alguém.

Ele sorriu e começou a falar, mas ela o interrompeu gentilmente.

- Então, depois de alguns dias ela acabou descobrindo que o tal escritor mora no mesmo prédio que ela e na semana passada me mostrou quem era. Acho que você não me viu por lá, mas talvez lembre da primeira vez que nos vimos, enquanto eu saia do elevador? -ele assentiu- Não me pergunte como, mas ali eu já achei que o conhecia de algum lugar e, bom, durante as duas semanas seguintes "conheci" alguém por meio de palavras. Agora sei que são a mesma pessoa.

Olhou-o sugestivamente com um sorriso no rosto e tirou alguns guardanapos de dentro da bolsa.

- Eu tenho guardado. E tenho pensado o tempo todo no que você escreve. Eu sei que parece loucura, mas cada palavra sua ficou na minha mente. Acho que já até sei alguns de cor.

Ela enrubeceu, e guardou de volta com cuidado.

- Espero que não me ache meio maníaca...

- Não, não! Eu... Na verdade, fico muito... feliz que tenha gostado. Eu tenho essa mania de sair escrevendo e deixando por aí.

- Devia guardar e escrever um livro. Já pensou nisso? Você escreve livros?

- Ahn... -ele sorriu- Sim. Na verdade, estou escrevendo um. Depois eu te mostro...

Ele terminou a frase em tom de pergunta, sem saber se não devia falar como se já pensasse em vê-la de novo. Mas era exatamente o que ele queria. Ouvir sua voz doce e melodiosa tantas vezes mais quanto fosse possível.

Marina assentiu e continuou.

- Eu gostei daquela que fala de um suposto anjo. Acho que é uma das minhas favoritas. De onde vem sua inspiração?

Pensou em ser honesto, mas ficou calado. Você, ele pensou, tem sido toda a minha inspiração. Ela remexeu no pescoço, como se procurasse algo que não estava mais ali.

- Desculpe. Acho que essa pergunta foi muito pessoal.

- Não, tudo bem. Bom, eu... É... Eu vou te mostrar minha inspiração.

Daniel tirou o camafeu do bolso. Há alguns dias havia descoberto uma abertura e, dentro, achou um papel bem pequeno, com uma letra bem pequena escrita:

Às vezes eu seguro-me à dor, pois é tudo que me resta. Mas espero por aquele que vai preencher meu coração como eu preencho essas linhas. Alguém que me dê um bilhão de motivos para atravessar a vida e faça colorir cada parte de mim que enegreceu. Sou apenas um resto de algo que caiu do espaço e não consegue saber se é estrela que brilha ou só mais uma pedra opaca, endurecida pela vida.

- O camafeu! - Marina remexeu ao redor do pescoço mais uma vez, então pegou o camafeu entre as mãos- Você o encontrou! Como...?

Daniel percebeu a voz embargada e foi sua vez de segurar a mão dela.

- Eu encontrei naquele dia que nos vimos na frente do elevador.

Ela deixou o riso escapar, olhou-o cheia de lágrimas que queriam cair e apertou carinhosamente a mão dele com o camafeu entre os dedos dos dois.

- Não tenho como agradecer o suficiente!

Ela pegou o cordão e o colocou no pescoço, guardando para dentro do vestido e sorrindo para ele, os olhos expressivos como na foto.

- Então, agora eu preciso te perguntar como ela.. É, você...

Ele gesticulou para onde agora estava o camafeu, com Marina, e não soube como perguntar se ela tinha mais de cem anos de idade.

- Ah, sim- riu- Eu sou parecida com ela, não é? Eu mesma me impressiono. Mas é minha bisavó. É uma das poucas coisas que me resta da minha família que tem algum valor sentimental. Muito valor sentimental, na verdade! Eu perdi muitas pessoas... Não há muito mais...

Ele assentiu, sabendo exatamente como ela devia ter se sentido ao perceber que perdera o camafeu. Os dois continuaram conversando, sem que percebessem as horas passando...

Tempos depois...

Daniel não precisou virar para saber que ela entrara quase silenciosamente, seus outros sentidos diziam isso sem que a visão fosse necessária. O perfume de flores, o ritmo leve dos passos. Sua risada doce encheu-lhe os ouvidos enquanto ela o envolvia com os braços.

- Escrevendo?- Marina o virou na cadeira giratória na frente da mesa, no quarto dele.

- Acho que terminei.

- É aquela história sobre um camafeu e uma garota ruiva?

- Essa mesmo!

Ele a puxou para um beijo leve, e ela sentou em seu colo.

-Fui comprar um café pra gente e soube que você tinha ido lá hoje.

Ela pegou um guardanapo de dentro da bolsa e pousou na mesa ao lado, sorrindo.

Tornei-me um café amargo

Mas acompanhado

Até que fico doce