496-TERAPIA DE CASAIS -

— As mudanças e transformações são partes de nossa vida. O dia em que todas as pessoas compreenderem isto, o mundo terá paz e todos seremos felizes. — Sem querer pontificar, Raquel falava com convicção e entusiasmo. — Se as coisas não funcionam de determinado modo, é necessário mudar, transformar, adaptar, melhorar, seguir novos rumos, sem medo de ser feliz.

Estavam reunidos no apartamento de Miriam, a patronesse do jantar. Eram cinco à mesa: Raquel e o marido Carlos, Miriam, Jaime e seu Joaquim. À luz das velas, ao som de música suave e inspiradora, o vinho generoso sendo degustado com prazer, o jantar decorria entremeado pela conversa agradável de todos os participantes.

Era uma comemoração. O retorno à vida conjugal de Miriam e Jaime, que há dois anos haviam se separado, era muito importante não só para eles, como também para Raquel e Carlos, o casal que os acompanhava e que, de certa forma, fora responsável pelo reatamento das relações. E seu Joaquim, pai de Miriam, que passou a morar com a filha quando ela havia se separado de Jaime.

— As pessoas que estudam a ciência quântica explicam que a energia pessoal de cada um está sempre à procura de seu complemento. Há uma necessidade física de sintonia com “o outro”, com aquele ou aquela que nos completa, que nos faz funcionar plenamente. — Carlos entretém a todos com sua conversa sempre interessante. — É a explicação científica que dão para a nossa procura incessante pela outra parte de nossa vida. Pela pessoa que irá nos complementar e completar.

— O senhor devia ter estudado psicologia. — Diz Miriam.

— Qual o quê! — Carlos responde. — Gosto mesmo é de conviver com as pessoas, ajudar no que for possível. Não sou bom conselheiro. O que sei fazer é ouvir com paciência.

— Para nós, conhecer vocês dois foi a salvação. Vocês são os responsáveis pela recuperação de nosso casamento, sem dúvida nenhuma. — Disse Jaime, levantando-se com o cálice nas mãos. — Vamos brindar. Em primeiro lugar, a estes dois maravilhosos amigos, Carlos e Raquel, e depois, à reconstrução de nosso casamento.

Todos se levantam e brindam entre sorrisos e murmúrios.

Não é a primeira vez que Raquel e Carlos conseguem fazer com que casais separados voltem a conviver juntos. Já perderam a conta, sem, contudo, diminuir a disposição de ajudar casais em dificuldades. Não sabem datar exatamente quando e como começaram nesta missão.

Carlos ainda trabalhava e Raquel lecionava, quando os primeiros “casos” surgiram. Eram ambos muito queridos entre colegas e tinha um vasto grupo de amigos, casados, solteiros, jovens ou idosos. Participavam de todas as festinhas, e promoviam também reuniões em sua residência. Tinham três filhos e os amigos e colegas dos filhos se tornavam também amigos do casal. Uma empatia geral circulava na família, que era notada pelo bom humor, pela camaradagem entre pais e filhos, e pela felicidade que exalavam.

Por serem abertos às discussões e dispostos a ajudar, amigos começaram a procurá-los para confidenciarem seus problemas. Com o passar dos anos, foram sendo procurados pelos amigos dos amigos dos amigos, que foram chegando e que iam aumentando o círculo de amizades e o rol de casos que eles ajudaram a resolver.

Ao se aposentarem, passaram a fazer, conscientemente, este trabalho. Raquel se propôs a ministrar aulas no curso de noivos, mas não o fez por muito tempo.

— É tudo muito estruturado e rápido, a gente não tem como falar das experiências vividas.

A cidade era de porte médio, havia ainda um certo nível de relacionamento entre pessoas, que tinham tempo para se visitarem, conversarem a sós, essas coisas que hoje não existem mais. Por isso, Raquel e Jaime tornavam-se amigos e íntimos dos casais cujo casamento estava balançando ou que já haviam sido desfeitos. Porém jamais se intrometiam e nunca entravam onde não eram convidados.

Os anos correram, os cabelos embranqueceram, as rugas e outras características da idade apareceram. Entretanto, a energia e a disposição de Raquel e Carlos jamais esmoreceram.

E ali estavam eles, naquela noite, convidados para o jantar da re-união de Miriam e Jaime.

— Faço questão de que vocês participem. — Disse Miriam, quando os convidou. — Seremos apenas nós quatro e papai, que está morando comigo, e que sabe do papel que vocês desempenharam para que eu e Jaime voltássemos às boas.

A conversa prosseguiu animada. Jaime abriu outra garrafa. Seu Joaquim conhecia vinhos, e havia escolhido a safra e ano do que estavam saboreando.

Já passava da meia-noite quando Raquel falou em se despedir. Carlos concordou e levantou-se, mas Jaime interveio:

— Não, fiquem mais, estamos apenas começando. — Falou, numa voz meio pastosa.

Por uma questão de gentileza, concordaram em ficar.

— Mas só por alguns minutos.— Disse Raquel.

Conversa vai, conversa vem, eis que de repente Jaime leva a mão à testa, dá um tapa em si mesmo, como se lembrando de alguma coisa. Os olhos parados, arregalados. Fica estatelado, meio virado na cadeira.

Todos se assustam. Seu Joaquim, que estava mais próximo, levanta-se e puxa-o pelo braço.

— Jaime! Tá sentindo-se bem?

Miriam também se levanta, chega perto de Jaime.

— AI, meu Deus! Ele está tendo um ataque!

Jaime, num átimo, se refaz e salta da cadeira.

— Achei! Agora descobri tudo! Vocês são uns farsantes! — Grita, dirigindo-se a Raquel Carlos. — Isto tudo aqui é uma encenação... pra me pegar!

Miriam tenta abraçar o marido, que, de pé, balança perigosamente.

— Querido! Do quê você está falando?

— Isto tudo é uma armadilha. Você também está nessa armação. Pra que eu volte.

— É melhor a gente ir agora...— Raquel começa a falar, mas o marido segura seu branco.

— Deixa ele falar. Tomou vinho demais.

Seu Joaquim confirma:

— Ele sempre foi fraco para bebidas.

Jaime, entretanto, continua o ataque:

— Vocês são profissionais, estão aqui contratados por alguém. Miriam, seu Joaquim, sei lá que combinou isto tudo. E eu pensando que a gente estava mesmo reatando nosso casamento, numa boa.

— Sente-se! — o pai de Miriam ordena. Jaime obedece, mas continua exasperado.

Carlos levanta-se e chega perto de Jaime.

— Você tem razão. Isto tudo foi feito para que você e Miriam voltem a viver juntos. Pode pensar o que quiser sobre nós. Diga que foi golpe, armação, armadilha. Mas está provado que vocês se amam e que podem continuar vivendo juntos. O resto é com você.

— Estou sabendo o que você faz com esses “casos”. Com certeza vai vender pra televisão ou para alguma revista. — Jaime quer ter a última palavra.

— É isso mesmo. — Carlos agora fala alto, no mesmo tom de Jaime. — Vou levar pro programa do Ratinho. Ou da “Cidade Suja”. Quanto maior o escândalo, mais sucesso.

— Então...então...

— Então, é melhor você esquecer que sabe de tudo. Sem escândalo, não tem venda. — Carlos finaliza.

E dirigindo-se para Raquel:

— Vamos, querida. Boa noite a todos.

Saíram apressadamente. No carro, ainda chocada com o diálogo entre Jaime e o marido, pergunta-lhe:

— Porque respondeu daquele jeito? Não é verdade!

— Sei que não é verdade. Mas lá vou eu discutir com bêbado? Agora, ele vai dormir e amanhã esquecerá de tudo. Se lembrar, ficará sempre a dúvida. E a melhor atitude de quem duvida...é ficar calado.

ANTÕNIO GOBBO

Belo Horizonte, 30 de maio de 2008 –

Conto # 496 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/11/2014
Código do texto: T5025446
Classificação de conteúdo: seguro