No topo da ladeira.

Um dia eu estava subindo a ladeira de uma das ruas mais conhecidas da cidadezinha onde eu morava antigamente. Nunca vi tão grande alvoroço na esquina da tal ladeira, a lareira que eu subia. Juliana, filha de Sr. Carlos, dono da quitanda de frutas, conhecido que só, Juliana, a qual nunca era vista fora de casa devido a gravidez inesperada e fora do casamento, que causou maior tititi até nos confins da cidade, até Juliana meu caro, até Juliana estava metida no tal movimento, com as mãos na barriga ainda pequena, estava lá, na certa se aproveitando dos momentos em que sua vida não era o caso de maior comentário, se aproveitando dos minutos ou horas eu não sei, que o povo tirara de sua ocorrência a atenção para dar ao que estava acontecendo ou prestes a acontecer em plena 16;30 da tarde. As moças da rua 46, a rua que mais tinha mulher, a rua que ficava do lado da esquina da ladeira que eu subia, ladeira que a cada segundo parecia ficar mais plana, por causa do peso das vozes, estavam todas lá, arrumadas e o cheiro de seus perfumes baratos se misturavam com o muitos brilhos das luzes presentes na frente de cada casa. Subindo a ladeira eu estava, mas, não mais com o objetivo que tinha ao sair de casa, nunca vi tanta gente, tanta mulher reunida, mulher bonita, nunca vi tantos perfumes formando num todo, um só. Eu que já tinha calculado meu ir verdadeiramente rápido no mercado para comprar meu sabonete, que me faltara desde cedo, o que me fez pela falta de mercados abertos, tomar banho com o sabão de lavar pratos pela manhã, eu que já havia programado minha noite, quieto, em casa, supostamente ouvindo meu radionovela às 8;30, carregava no momento pensamentos contrários a minha programação, eu que que no inicio do meu trajeto desejava voltar para casa rápido, desejava agora, ficar lá mesmo, no topo da ladeira. Ninguém que estava lá olhava para baixo, nem mesmo as poucas crianças, que geralmente são bem desatentas. O olhar estava fixo no lado esquerdo, onde na certa devia estar o motivo para tão grande reunião. Quando eu já estava próximo de chegar perto do povo e então descobrir o que se passava, vi Maria e temi encostar daquele jeito, já tinha tanto tempo que nós não nos víamos e me aproximar daquele jeito, maltrapilho e nada agradável no cheiro só pioraria nosso caso, caso que na verdade nem tinha começado, caso que eu mesmo e sozinho havia formado, planejado. Eu meio que receoso voltei alguns passos, mas, não tinha como eu dar para outro caminho, não tinha como eu passar andando por ali sem que Maria, que estava tão deslumbrante, a mais bonita, não me avistasse e além do mais, meu sabonete, eu precisava comprar. Como não tinha outra saída, se voltasse para casa ficaria sem saber o que se passava e sem um bom banho resolvi passar, mas, do meu jeito. Como Maria não poderia me ver da forma como eu me encontrava e eu sempre fui de fazer coisas que até eu julgava com um tom cético, duvidando, me abaixei e bem devagar fui engatinhando entre as penas do povo. Pernas de saias, de vestidos, pernas de pêssego, de porcelana, pernas mulatas de morenas brancas, as mais desejáveis meu caro amigo. Revolvi não olhar para cima, mais a vontade era extrema, deixei que meus olhos o fizessem por mim e eles, muitíssimos egoístas, do que viram nada me contaram. Já no fim de meu trajeto, já subindo no passeio que dava para o mercado, me deparo com um folheto que informava a chegada do ‘’ Grande Circo Spartacus’’, era assim que estava escrito, o qual chegaria sexta feira às 17;30, hoje , daqui a pouco, ali, eu já havia descoberto o motim do movimento que provocara meu sufoco, o circo, que se segundo as minha horas estava chegando em dez minutos. E realmente estava. O tempo mínimo que faltava para ele chegar foi confirmado através da intensificação das andanças e eu de certo comecei a ficar zonzo, quando um salto bem fino, de uma moça com coxas bastante grossas me pisou, o estopim dos sofrimentos explodiu, fora os chutes e os trompaços que marcavam a grande noite. Faltavam cinco minutos para o circo chegar na praça, mas, já se podia ouvir o som de muitos instrumentos misturados e o povo e as pernas dançavam, em vários ritmos, o que fazia minha tontura e minha perca, por não saber mais onde me encontrava, serem mais progressivas. Entre as brechas das pernas, que em número se davam mais as de mulheres, vi de perto ou de longe , não sei, naquele passo de tempo as ilusões de óptica já me eram possíveis, uma cadeia de luz, um par de pernas diferente de todos os outros, tente imaginar se puder meu compadre. Os pés que o fazia ficar de pé e ter sustento para encantar, pareciam ter sido desenhados por um artista moderno do século XX, cansado de normas e padrões, quis causar nos contempladores de sua obra sede por beijos, quis fazer algo jamais feito, um pé inesperado, chocante, plausível, parnasiano, um pé elegante, que descalço já tinha toda graça. Subindo as linhas de seu tornozelo e já escorregando em suas panturrilhas brilhantes, já era perceptível o quanto sua melanina meio desbotada me embebedara causando enfraquecimento. De quem eram aquelas pernas?

Com curiosidade aguçada e desejo martelando de forma ininterrupta, rastejei feito réptil para mais próximo da formosura e já não aguentando mais o desejo de chegar até o cume daquela bela arte, limpei minhas mãos nas calças de um moço que pelos passos parecia bêbado e agarrei aquela arte moderna, intensa e sutilmente agarrei, toquei no desenho, e me apegando às pernas da desconhecida, esqueci meu estado decadente, meus compromissos, esqueci o sabonete, o radionovela , esqueci as dores do pisoteio. Foi inevitável que ela não percebesse um doido, doido por suas patentes e embora faltasse pouco para a festa do circo se misturar com festa do povo, a moça de quem eu falo nem quis mais seguir o olhar para o espetáculo, ficou ali, pensando, quem será que pega minhas pernas? Apesar de eu ter verdadeiramente me agarrado às as elas , não percebi em sua reação tão grande ’assustamento’, suponho que o que ela deve ter sentido mesmo foi curiosidade, a mesma que eu sentia, ambos queriam se descobrir. Quem toca minhas pernas? De quem são essas pernas?

Eu subi e já estando em seus joelhos, percebi que o tumulto apertado aos poucos se afrouxava por causa da chegada do circo, com o povo correndo para um lado, o esquerdo, o lado da praça, ficava mais fácil pra mim desvendar o mistério. Do joelho passei para sua cintura, cintura que parecia ter sido moldada por um oleiro egípcio, era uma cintura de pilão, bela. Apesar de estar cada vez mais próximo do cume da arte, ainda me encontrava com as pernas abaixadas, como se de joelhos, e a imagem que se tinha de mim era a de um louco apaixonado, aos pés, aos joelhos, as cinturas de uma moça, a qual nem se sabia o rosto. Já impaciente, fui me erguendo devagar e senti suas mãos em meu queixo, as mãos da moça, como se implorassem o tal movimento, como se o esperasse. Subi. E já estando suado e cansado, vi seus olhos fitos nos meus, eles calaram meus atos e por algum instante pensei estar sonhando. Era Maria, a Maria dos meus casos e era bem melhor. Na esquina já vazia estávamos, eu e ela.

Quando sem forças disse ---- Maria, é você, e ela desconfiada pronunciou meio que sussurrando ---- Você por aqui, as palavras não diziam o que era pra ser dito, então, eu as esqueci. Em um só movimento, aproveitei que minhas mãos ainda estavam ousadas na cintura da cigana que me roubara noite e a puxei para mim, e como se tivéssemos combinado, suas mãos em meu queixo subiram pelo meu maxilar passaram por meu pescoço e resolveram acampar em minhas orelhas, foi crucial o beijo, beijo cheio de duvidas e certezas, um descobrindo o outro, eu me encontrando com Maria, querendo ficar na esquina pra sempre, a noite toda.