Os Recados do Além
Antes de ganhares estatuto de vidente eras como todas as pessoas. Um dia aceitámos fazer uma sessão com o Além e ficámos, de mãos dadas, encostados a demasiada gente que se espremia à volta da mesa de três pernas. Foi, na verdade, uma emoção perceber-te a forma das coxas, o calor do corpo, a seda suada das mãos, o olhar velado com que me dizias estar no paraíso. Comunicávamos contraindo os músculos das coxas muito juntas e isso excitou-nos tanto que nos sentíamos nus e íntimos. Havia a taça com letras na mesa, havia muitas mãos a induzi-la à rotação e, de repente, foram cuspidas as letras que alguém juntou para ler o recado. Eu deveria sair da sala e tu ficares disponível para continuar as tarefas. Saí corado de vergonha, desencantado, proscrito. Muito depois soube que te reconheceram poderes, que usaram o teu corpo para as falas do Além, que saíste a levitar como os anjos mas com acentos de grande perversidade no olhar. Entre as rezas e os anátemas, as benzeduras e os banhos de arruda, os desmaios e os gritos, gastaste estes anos. Podíamos ter sido felizes mas, depois daquela noite, nunca mais quiseste olhar-me, falar comigo, retomar a sede que sentimos no aperto da sessão. Ficaste madura e célebre. Dizia-se que estavas rica. Falavam-me de ti em França. Tinham-te medo e respeito, sentimentos próprios de fiéis ao catolicismo ancestral mas crentes também em coisas do demo. Que te procurasse, dizia-me, da tua parte, o mensageiro. Esperavas-me à soleira da porta onde, em caligrafia rudimentar, escreveste: Hoje não há consultas e, amanhã, também não. Olhei-te. Reconheci-te pelo olhar. A mesma força, a determinação explícita, a vontade de recuar. Agora sou eu quem atualiza os dizeres do cartaz para afastar os insistentes. Será assim até podermos sair do País. Decidimos viver juntos um quotidiano banal.