Camafeu

As portas abriram e o vento gelado entrou, cortando as mesas mais próximas, esfriando o café do único que estava em uma delas. Todos os outros clientes ficavam o mais próximo possível da lareira da cafeteria, mas ele não se decidira entre sentir o calor ou o frio. Só queria sentir e optou por ambos, o gelado avermelhando seu nariz a cada vez que a porta abria, o calor do café esquentando-o um pouco por dentro. Mas era efêmero.

Rasbicou num guardanapo:

Sentei na mesa sete

Pedi café forte, mas

nem de café gosto

Só queria ficar

Ter algo que fazer

Tomou o último gole, guardou a caneta no bolso e saiu. O vento era o que tornava mais insuportável, mas ele afastou os pensamentos disso também, como vinha fazendo bastante ultimamente. Não se decidia entre sentir ou não. Sentir podia ser intenso demais pra suportar, mas ele odiava, também, a pessoa fechada que estava se tornando. Não se reconhecia.

Por dois quarteirões caminhou no automático, quando sentiu pisar em algo e não teria olhado se não fosse o vento forte que o atingiu, fazendo-o recuar. Olhou o objeto oval com moldura intrincada ao redor e a foto de uma pessoa no meio. Um camafeu. Observou-o entre os dedos. Apesar do frio, o metal não estava gelado. Provavelmente caíra a pouco tempo, mas a rua estava deserta. A mulher na foto era realmente bonita, olhos expressivos e o cabelo caindo até onde não se via na foto de rosto.

Percebeu-se sorrindo enquanto olhava nos olhos da desconhecida, que pareciam sorrir de volta, como só quem tem o sorriso genuino, daqueles que chegam aos olhos, consegue fazer. Não lembrava a última vez que havia sorrido de verdade por algo tão pequeno e ficou surpreso consigo mesmo. Ora, que bobagem, ele pensou. Sorrir para a foto de uma desconhecida. Imaginou que devia deixá-la ali no chão, talvez quem perdeu o camafeu sentiria falta e viria procurar. Mas não o fez. Não é algo que se encontra todo dia, e ele realmente não queria que qualquer pessoa acabasse encontrado. Queria o camafeu. Queria a foto. Queria encontrar a garota.

Mas a imagem pousada na palma da mão era em preto e branco, não nítida o suficiente para que pudesse sair procurando por aí pela pessoa. Mais: no canto direito, viu o ano e seu sorriso desvaneceu: 1894.

Pela segunda vez olhou em volta, mas não viu ninguém andando por ali. Seu olhar seguia como imã de volta à foto, e ele decidiu recomeçar a andar, levando-a consigo, tentando encontrar algo que ainda não tinha visto, algo que o levaria ao dono de um objeto tão incomum de ver alguém usar hoje em d...

Buzina. O som ensurdecedor o faz olhar pra cima. Não havia tempo para desviar, o carro iria bater. Pensou tudo ao mesmo tempo: que havia parado no meio da rua. Que tinha que sair. Que nao estava mais com o camafeu nas mãos, havia jogado de suas mãos ante o susto. Pulou para pegá-lo na calçada à sua frente, o carro passou. Recuperou-o.

Prendeu um suspiro até se certificar que estavam inteiros, ele e o camafeu. Não era a primeira vez naquela semana que isso acontecia, um quase acidente. Sempre devido à sua distração, mas geralmente havia alguém por perto. Naquele dia foi o camafeu que o salvara.

Já estava na frente do prédio, decidiu entrar. Esperou pelo elevador olhando sua imagem refletida na porta de metal e, quando abriram e seu reflexo foi separado ao meio, sentiu que o mesmo acontecia com seu coração ao ver quem estava lá dentro.

A garota da foto.

Não tinha como ser, ele sabia. Mas era.

Ela o olhou por dois segundos a mais, e saiu pela porta. O cabelo era ruivo, algo que ele não tinha como ter visto pela foto. Mas não havia dúvidas de que era a mesma pessoa. Depois de tanto tempo encarando-a no camafeu, ele não se enganaria. Mas ela já partira. Entrara num carro, pelo que pôde ver pela portas de vidro do prédio, e se foi.

Ficaria plantado ali até ela voltar? Ou confiaria no fato de que iriam se encontrar, afinal moravam no mesmo prédio? Ele nem sabia se ela morava ali, na verdade havia se mudado essa manhã. Decidiu então subir para o apartamento.

Fechou a porta com a chave e foi desviando das caixas ainda cheias. Depois ele arrumaria tudo. Depois. Só não gostava do quão vazio aquele lugar estranho estava. Um lugar sempre parece maior quando vazio do que quando ocupado. O vazio é mais sentido. O silêncio é alto. Abriu a geladeira, pegou o vinho, sentou na frente do computador e escreveu. Escreveu até dormir.

A primeira noite não foi tão ruim. Ele sentia falta da casa dos pais e sentia falta deles, mas era melhor estar sozinho nesse lugar estranho a ele do que em uma casa para sempre vazia. Seus pais não voltariam, e ele já não era mais um garotinho que precisava de tutela. Mudou de cidade e foi começar uma vida. Quem sabe assim, tentando, ele poderia encontrar motivos para realmente vivê-la.

Começou pelo livro. Estava quase terminando e a editora disse que seria bom se ele terminasse em alguns dias, mas como já o conheciam depois de algumas publicações, sabiam que ele escrevia em seu próprio tempo. Até o final de sete dias, quem sabe, estaria tudo pronto- foi o que ele disse. Mas a verdade é que escrevia quando a inspiração vinha e ultimamente ela vinha a cada dia para uma história diferente, enchendo a lixeira de histórias incompletas.

A luz do meio da manhã pouco entrava pelas frestas da cortina quando ele acordou e o sonho veio a tona junto com a verdade: não aconteceu. Ficou impregnado na memória, mas são apenas lembranças do que nunca aconteceu.

Ele havia encontrado a garota, a do camafeu. No sonho não parecia estranho ela ter mais de cem anos e, além de estar viva, ser apenas uma jovem que estava na faculdade, como ele. Só lembrava isso. Só lembrava de saber, de conhecê-la, de ter conversado com ela. Mas conversado o que?

Dessa vez sentou perto da lareira com o café mocha e algo para comer na mesma cafeteria da noite passada. O inverno continuava, o vento frio incessante, agora com um chuvisco. Pegou um guardanapo e tirou a caneta do bolso.

Ela se foi como brisa, como fogo

O cabelo quente

Um suposto anjo

Mas diferente

E como fogo deixou um rastro atrás

Sua imagem em mim

Jaz

Não havia como ser pior. Agora a desconhecida ocupara também seu espaço na poesia dele. O camafeu ainda estava no bolso, ele já não sabia o que queria fazer. Caso se reencontrassem, ele não iria querer devolver e vê-la ir embora com um mero agradecimento ou o que fosse. Queria que ficasse. Que provasse ser verdade, não só uma alucinação. Que não fosse só essa sua alma antiga pregando peças aos seus olhos e imaginação. Queria a garota e seu meio sorriso na boca, mas tão expressivo no olhar.

Mas passou uma semana e nada mudou.

Nem mesmo o livro ele conseguiu terminar. Quis começar uma nova história sobre uma garota ruiva e um camafeu, mas só iniciou uma pequena história do que foi. Do que nunca será.

Fim da parte 1