Uma verdadeira estória de amor

Ele usava um paletó escuro e pesado e só percebeu que deveria estar usando um paletó mais fino quando já havia suado o bastante a ponto de chamar atenção, esperando o sinal abrir, na avenida Sete de Setembro, próximo do Shopping Estação. Haviam pessoas próximas dele, pessoas velhas e jovens, mas todas com a mesma carga de serem insignificantes, meros mortais esperando o vermelho luminoso embaçado tornar-se verde, ricos e pobres petrificados na extremidade de uma calçada. O cheiro de urina apossava-se de suas narinas, vagarosa mas intensamente. Haviam muitos moradores de rua naquela região, naquela cidade. No Brasil todo. E de repente Curitiba pareceu a ele uma cidade desagradável, inimiga, ameaçadora.

Estava cansado do banco, dos clientes que queriam dinheiro e dos que urgentemente queriam quitar suas pendências. Estava cansado dos onibus berrantemente coloridos, das lanchonetes dos chineses, do clima imprevisível e dos homens que surgiam como fantasmas quando começava a chover, gritando mais alto do que se deve gritar em qualquer situação: " Guarda-chuva vai a dez!"

E começou a chover,e ele já caminhava, sem guarda-chuva, sem esperança, sem convicção de ser feliz. Alcançou a avenida Barão do Rio Branco, molhado e apático, conformado com seu mundo deprimente silencioso e adentrou o prédio. Não havia elevador, e era esse um dos motivos, inumeros e e indeleveis motivos, pelo qual andava a brigar com a mulher.

Quando abriu a porta de casa, logo sentiu o cheiro de chá. Agora ela deu pra tomar essa merda de chá, ele pensou. Jogou a a pasta no chão e arremessou a si mesmo no sofá. Ficou deitado, de olhos acesos, observando as rachaduras no teto. As infiltrações estavam cada vez piores. Já havia discutido demais com o vizinho do andar de cima, e há dois anos havia desistido de tocar no problemático assunto espinhoso.

Então, há dois anos ele chegava do trabalho e deitava no sofá, depois de abandonar com desleixo a pasta no chão, torcendo para o teto ruir.

Como de costume, ele estava quase entregue aos braços de Morfeu, quando ela apareceu, como um fantasma, igualzinha aos clandestinos vendedores de guardas-chuva.

- Quando vai resolver isso, disse ela, olhando para o teto, quebrando o silencio do pequeno apartamento. Ela não podia ter filhos, e depois que o sexo perdeu a graça, nem mesmo iam para a cama. Ele dormia no sofá, com a TV ligada há semanas. E por isso mesmo a casa andava num silencio absoluto, a nao ser pelos pingos da infiltração e pela televisão ligada durante a madrugada.

Um píngo grosso e espesso acordou-o de seu cochilo e ele a viu. Não significava mais nada. A chuva aumentou generosamente lá fora, agredindo as janelas que davam vista para a rua José Loureiro com grandes bátegas. Ele levantou com o esforço de um homem de setenta anos, embora tivesse 39. Olhou para ela, dos pés a cabeça. Ela estava com uma xícara de chá nas mãos, olheiras profundas, descalça. Como uma mulher morta, se não fosse pelo chá, ele pensou.

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"Adeus' , ele disse, e se foi, saindo pela porta como se estivesse num lugar desconhecido e inabitável.

Ele não podia mais fumar, o médico deixou bem claro: " Mais um cigarro e o senhor vai para o paletó de madeira". Isso foi recente. Mas isso não tinha mais importância.

Caminhava, ele, com seu paletó molhado, segurando o cigarro comprado numa banca de revistas, soprando a fumaça com confiança, fazendo gestos incompreensíveis e lacônicos com as mãos. Alcançou a rua Barão do Rio do Serro Azul, e depois de passar por um restaurante vegetariano repleto de burgueses que nada sabiam e sabem sobre a vida ou a morte, encontrou um bar sujo, onde podia feder até a morte sem ser perturbado ou incomodar alguém. Pediu um uísque. Red Label. Por certo falso, mas ele não se importava mais em ser enganado. Ele encerrou a primeira dose. Pediu mais uma e foi até a porta fumar um cigarro. Acendeu o cigarro e de súbito caiu duro no chão. O celular tocou em seu bolso, e ele morto, obviamente não atendeu.

Era ela, preocupada, ligando para saber onde fora seu esposo. Ela desistiu de ligar após dez minutos, realizando incessantes ligações vãs. Deitou seu corpo frágil no sofá e ficou assistindo as rachaduras causadas pelas infiltrações no teto, como ele fez, minutos antes, quando ainda era vivo.

Um gota bateu com violência em seu nariz.

E aí, magicamente, o teto ruiu. Ela morreu na hora.

Foram felizes até onde conseguiram.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 12/10/2014
Reeditado em 12/10/2014
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