Feliz Ano Velho
ENQUANTO do lado de fora da casa se ouviam os fogos de artifício, dentro dela havia o mais absoluto silêncio. Naquele ano não haveria festa de Natal. Não iam chegar os primos, tampouco os tios que vinham de outra cidade. Não haveria conversas de família pelos corredores. Não haveria cheiro de comida, nem fumaça de churrasco. Nunca mais haveria.
E lá estava, deitada na cama, trancada no quarto, olhando para os pés, buscando felicidade. Muito antes da meia-noite seus pais já dormiam em outro cômodo. Foi um dia difícil, foi um ano muito difícil. Tudo estava errado. Difícil de explicar. Sabia que estava errado, só não havia como explicar o porquê.
Mentira não mata mas é um veneno que é engolido aos poucos. Somente naquele dia havia feito mais de dez ligações para o celular. E era sempre assim. A voz suave da caixa postal tornava ainda mais amargo aqueles dias que eram lágrimas e solidão. Ligar para aquela casa também não adiantaria mais. Quem sabe então receber uma ligação. Alguma? Mas de quem? Pela janela soprava um vento frio. E sentiu subir por todo o corpo um extremo calafrio. Já tinham ligado, em outro tempo, em outro momento. O próprio problema antes de se tornar um, mas também um outro alguém, a possível solução.
Esse outro era um tal fulano com quem trabalhara desde o início do ano. Simpático, solteiro, quarenta anos. Aparentemente tranqüilo e muito educado. Muito apresentável, olhos esverdeados, levemente grisalho, bonito. Tinha tudo para dar certo.
Nossa você está muito triste, está grávida? No meio de um encontro esta frase surtiu como uma sacudida. Não, não estou, apenas cansada. Nem uma coisa, nem outra. Mas não poderia dizer que nem os beijos, os passeios e o cheiro daquele novo perfume a fariam esquecer.
Mas foi só depois de uma noite sem desejo e sem amor, que se deu conta, de que nada que fizesse adiantaria. Era um cara legal, apesar de tudo, foi. Como naquela tarde em que almoçou na casa dele. A pretensa sogra serviu o almoço depois de chegarem do parque. Foi com ele que foi pela primeira vez ao lugar a que voltaria muitas e muitas vezes depois. Com uma, duas, suas outras vidas. Mas ainda não poderia saber.
Por enquanto um prato simples de comida caseira e um cozido com carne gordurosa. Garfo, faca, e o medo daquela cachorra de raça, com focinho comprido. É como se fosse a minha filha, a levo para passear todo domingo. E como passeava, museus, parques, cinema vazio no meio da semana, churrasco com a família... não, neste não foi. Queria tanto, mas estranhamente recusou o brusco convite feito em meio a um passeio no shopping. Algo mudou no semblante animado.
Em pouco tempo, em algum restaurante ouviria do próprio palavras tão grosseiras que a fariam entender que a aparente perfeição de sua aparência e dos passeios eram apenas uma droga de efeito rápido e longas conseqüências. Tão logo as incertezas surgiram, o que estava em primeiro passou para segundo plano. Apenas viu a foto de família da qual não faria parte.
Foi sua mãe quem anunciou que talvez não fosse o que aparentava ser. Porque ela tinha sempre que conhecer? De uma forma ou de outra ela sempre conhecia- e sabia. Não falhava em sua previsão. Nunca falhou.
Intuição- era isso. Essa verdade que se conhece sem nada saber, sem nada dizer. Descobrir nas entrelinhas as falhas de uma mentira perfeita. Perceber nos olhos as intenções escondidas do pensamento. Ver além do que mostra o presente, a realidade. Descobrir mesmo quando, quem está perto, insiste, na mentira que aprisiona.
Este sentido reúne todos os outros. Soma-se algo de experiência, um pouco de desconfiança, mas acima de tudo, um certo talento. É preciso entendimento para se ter intuição. O grande impasse é que o amor é emoção, e- segue na via contrária da razão. Feito isto aquele final de ano duraria vários até a verdade libertadora aparecer.
E lá estava, na cama, mais de meia-noite. Os fogos já haviam cessado quando decidiu levantar e cumprimentar os pais. Não saíram da cama, nem do quarto. O Feliz Natal mais sereno, simples e verdadeiro.