As estações.
Kareki: Uma árvore infeliz.
O vale silencioso, emoldurado pelas folhas castanhas deitadas indolentemente sobre a terra, que riam de suas irmãs ainda abraçadas à suas mães de braços longos e nodosos, foi cruzado por uma ave tardia em busca do regaço tépido de paragens distantes e apenas sonhadas pelas sombras desse recanto oculto. Enquanto as primeiras joias do traje da noite passavam a refulgir no firmamento, afastando com seu brilho os tons laranja do céu, uma brisa carregando o hálito de Bóreas acariciou a pele rugosa do velho Kareki que estava sentado sobre a varanda de sua choupana.
Mais uma vez o toque frio da morte recobriria o mundo, lembrando aos vivos de sua perenidade e pequenez ante as moendas do tempo. O idoso sorriu ao contemplar o firmamento. Seu sorriso era pleno amargor e dúvida. Perguntou-se por quanto tempo ainda veria um novo dia, quantos anos ainda seria o responsável pela forja de sombras e se havia como se reconciliar com sua própria consciência. A cada nova mudança de cores no vale, a figura arqueada se embrenhava mais profundamente nessa floresta de indagações e temores.
Preso em sua teia de dissabores e arrependimentos, observava as pequeninas sombras erguendo nuvens de pó e folhas mortas em meio aos seus folguedos violentos. Houve era na qual o velho sentia uma mistura agridoce de orgulho e pesar ao contemplar as futuras sombras dos jardins palacianos, as quais, como a repetição monótona da cantilena do plantio e colheita, seriam jogadas nas fossas negras do esquecimento ao tentarem trazer luz aos mistérios sórdidos de almas baixas e sem penhor com sua honra.
Tantas sombras, tantos nomes, tantos momentos de labores perdidos ante o fogo das armas dos bárbaros de além-mar e dos fios prateados das almas de guerreiros. A cada partida, o espírito do ancião se lascava um tanto mais, pois sempre tivera o talento infeliz de perceber quando uma de suas queridas sombras seria apanhada na luz que a tudo apaga. A cada perda ele erigira uma figura votiva nos campos, mas após tantas idas sem retorno, uma pequena multidão de rochas entalhadas como homens felizes acabaram por se empilhar entre as ramagens vadias, o lembrando de sua incapacidade como forjador e esmagando seu coração. Ao depositar a centésima figura entre suas companheiras puídas pelos ventos e águas do firmamento indiferente, deixou de lado esse costume para tomar outro.
Passou a compor uma canção para cada sombra que jamais retornou. E inúmeras foram as notas que vibraram nos furos de sua flauta. Notas melancólicas, cheias de uma vergonha acachapante que fluía do peito arqueado do velho flautista. Vergonha por não ter exigido mais de si e de suas sombras. Vergonha por não as ter forjado com as chamas de sua total dedicação e paixão. Por não sentir mais qualquer afeto por seus rebentos levados ao matadouro sob o pretexto carcomido do dever.
Cada nova melodia surgida dos vãos do bambu era mais pesarosa e dolorida por relembrá-lo de seus discípulos caídos e de seus dois extremos como forjador de sombras. As reverberações cuspidas pelo instrumento, faziam com que o tempo se dobrasse por breves instantes e os anos idos fossem mais uma vez presentes. Neles podia ver a menina e o menino, tão iguais em suas diferenças.
Ela era mais baixa e de físico esbelto, como um garoto muito novo. Ele por sua vez, era alto e robusto, como um Tengu ou outra espécie de gênio da montanha. Mas quanto ao talento, ambos eram como sombras vivas, que apenas precisavam do regaço na escuridão de uma árvore antiga e frondosa para serem forjadas na forma perfeita e assim prosperar. Eram o orgulho do vale, a promessa de uma era de bonança e glória, mas a menina tinha a alma cheia de perguntas e anseios. Perguntas sobre o mundo fora das trevas, sem os grilhões do dever e todos os muitos anseios que uma mente curiosa traz consigo.
Já o menino, era como uma página de pergaminho em branco. Cada técnica, segredo e truque eram absorvidos com a sofreguidão de um viajor que singrou o deserto sem um cantil. Era mais lento no seu aprendizado do que a menina, mas sua aplicação e paixão o mantinha em igualdade. Com o passar das estações, os dois se tornaram rivais e dessa rivalidade surgiu o respeito, que lentamente tornou-se a pior das ervas daninhas e se enlaçou no coração de ambos.
O amor, essa erva ruim que mina a força do dever e lentamente permite a luz da dúvida e da desobediência minarem a alma de qualquer sombra, acabou por germinar e florir nos jardins do espírito dos dois prodígios do vale.
Sabendo da proibição do cultivo dessa planta, as duas jovens sombras mantiveram um abismo entre seus corpos. Talvez por isso, as dúvidas e inquietações da menina cresceram ao ponto de sua honra desmoronar e pavimentar sua estrada para o mundo além do vale secreto.
Assim que a notícia da fuga percorreu o recanto sombrio do velho forjador, as chamas do rancor e o fumo espesso do ódio dominaram a todos e como mastins, as sombras correram o mundo procurando pela fugitiva.
Somente o rapaz permaneceu junto ao velho, pois sua tristeza era como uma vaga que o arrastava para uma seara duvidosa, onde um passo mal percebido o jogaria no mesmo abismo vergonhoso ao qual sua rival se lançou.
O idoso por mais uma vez compôs uma melodia em honra a uma sombra morta, mesmo que ela ainda corresse pelos campos distantes em busca de quimeras pueris e desonrosas, pois para ele, estava perdida no vale da morte.
Pensando nos olhos de cores raras da rebelde, compôs uma melodia única, sua mais bela obra. Uma peça que serviria como marcha fúnebre para a sombra e o sonho que tivera de uma era melhor, onde um pouco da luz da glória inundaria seu mundo e traria bonança e acalanto para suas armas forjadas. A essa melodia, deu o nome de Kanashimi no kareki no uta.
O rapaz acabou por novamente seguir os atos do forjador de homens e tomou a flauta como porta para permitir a fuga de suas tristezas e decepções. Em poucas estações o instrumento se rendeu ao seu domínio e as notas sopradas pelo peito repleto de dessabores tiniam como joias lapidadas pelo mais talentoso artesão.
E como sons jogados ao vento, as estações passaram sem que a sombra fugitiva fosse dominada e todo amanhecer trazia no bico de um pássaro a notícia do fim do sopro das vidas daquelas que a perseguiam. Cada nova concha arruinada pela lâmina da traidora fazia a esperança do ancião mirrar, tal qual um broto largado aos cuidados do sol do deserto, e após tantos outros mais, ela finalmente morreu, legando ao forjador nada além da mais profunda culpa.
Então, quando já não restavam mais sobras, abriu seus punhos e liberou o rapaz, agora um homem, para que ele corresse até sua antiga rival e tomasse a luz de seus olhos.
***
Hachidori: A sombra andarilha.
Os campos eram arados pelos primeiros ventos de inverno, o pó rodopiava no ar cruzando as velhas estradas e transformando as cândidas lágrimas congeladas do céu sem lumes em lama.
Lentamente, no inexorável ciclo das estações, o horizonte se amortalhou de branco como se anunciando que a morte de mais um ano seria celebrada. Mais um longo e cansativo ano entre as trevas eternas de uma vida cada vez mais finita.
Quantos anos se passaram? Ela não já não era capaz de remontar as cores ou empilhar os dias passados em sua mente. Tudo se cercou de uma neblina rubra que se embrenhou em seu coração, o afogando, descolorindo e apagando as poucas luzes de sorrisos queridos.
Por vários enterros como o que se iniciava, foi capaz de rever as cores de sua infância e mocidade. Os vermelhos das máscaras dos festivais de primavera, os azuis dos seixos dos rios, o branco dos olhos do Daruma sem desejos, o esmeralda dos bambus refletidos no violeta do mar e o escarlate crepitante nas lareiras de sua vila natal.
Agora as únicas cores que preenchiam seus dias eram o negro da solidão e o vermelho ferruginoso do sangue.
Qual a última vez em que foi em um festival? Que pôde dormir sem pesares e amargores a cobrar suas faltas? Quantos anos se passaram desde o dia da separação?
Ela não se lembrava. Assim como a neblina da noite recobre os campos gelados privando o mundo de seus pequenos tesouros, o tempo a privou de suas memórias mais queridas e por ser incapaz de lembrar, cada momento antes querido, tornou-se agridoce, quase odiável. Isso a consumiu durante os anos, tirando sua esperança e lhe afogando nas trevas do remorso.
Mas a mais amarga era a do dia de sua fuga. Onde tentou ser algo mais, além de uma mera silhueta no escuro. O dia em que se tornou uma pária.
A tristeza gerou uma gota salobra, tal qual o mar, que escapou do olho e rolou sobre a face daquela sombra, levando consigo um pesar profundo, como o sono da morte, até o solo polvilhado de neve.
Indiferente às dores da andarilha, o céu despejava a mortalha com mais vontade sobre o mundo e rapidamente o branco se elevou do chão, lambendo o calor de suas pernas como um cão esfomeado.
Com passos leves ela carregava seu coração pesado até uma choupana abandonada ao lado de um regato à beira da estrada e usando do piso carcomido como lenha, lançou luz e calor em seu mundo de escuridão.
O cansaço a abraçou, mas antes de se jogar no reconforto da breve morte conhecida pelo nome de sono, foi visitada pelos mortos.
Entre os espíritos estavam amigos de infância, tios, primos, toda uma miríade de pessoas conhecidas. Pessoas que um dia ela tratou com carinho e que a quiseram bem. Os espectros ficaram entre as sombras da noite a relembrando de seus crimes e da desonra que lhe perseguia.
Mas qual honra uma sombra possui? Qual? Uma sombra é apenas um instrumento da vontade de seu senhor. Não possui vida ou vontade, apenas deveres. Só obedece aos caprichos daqueles que podem caminhar sob o Sol sem a necessidade de se ocultar nos jardins. É uma arma fiel e descartável cujo único direito é o de escolher o meio com o qual sua alma será trincada.
Mesmo tendo os espíritos ao seu redor rangendo dentes e grunhindo em revolta seu nome, ela devorou um pedacinho de morte, permitindo que o sono lavasse por algumas horas suas dúvidas e mágoas.
A sombra foi acordada pela melodia de uma flauta. As notas eram cheias de melancolia, todas conhecidas e que por um tempo longo demais estiveram sepultadas no fundo de seu coração.
Era uma melodia composta pelo tronco forjador, uma da muitas em honra de armas trincadas durante seus deveres. Ela seguiu a origem dos sons e ao ser beijada pela aragem da madrugada de inverno, percebeu uma figura sentada sobre um marco da estrada.
O homem interrompeu a sua apresentação assim que viu a garota. Seus olhos pareciam cegos, pois não havia qualquer brilho neles, apenas uma profunda tristeza.
Por segundos quase sem fim, ambos apenas observaram um ao outro, e o mundo pareceu encolher ante as mágoas expressas em seus semblantes. Com uma voz cheia de uma indisfarçada dor, o homem rompeu o lacre do silêncio.
-Valeu a pena, Hachidori?
Os olhos da sombra buscaram o chão enquanto os lábios libertaram sua voz.
-Não sei, pensava que sim, mas minha certeza morreu junto daqueles mandados contra mim. Cada amigo, irmão e conhecido que joguei aos pés da morte como pagamento por meu sonho de ser mais que uma arma, fez a certeza ruir e meu coração partir até não ser mais do que pó.
O flautista suspirou pesadamente e cristais surgiram onde segundos antes havia marejo. Os lábios da mulher se retraíram e seus olhos procuraram com maior avidez a terra congelada.
-Você me odeia. Odeia-me por eu ter ido embora, por te trair e por ainda viver.
O homem negou com vagarosos gestos de cabeça, sua face exsudava amargura.
-Não. Não mais. Por um longo tempo te odiei com todas as forças. Várias vezes afoguei-me em meu rancor de você, mas não te odiei por causa de tudo o que tu disseste. Odiei-te por nunca teres dito adeus. Apenas foste embora, levando minha alegria consigo. Você era minha luz. Meu regaço na escuridão. Quando você se foi, algo rebentou em mim e jamais consegui o remendar. E depois de todos esses anos, deparo contigo e minha amargura quase está a me afogar, pois todo o teu encanto se acabou e apenas o pesar restou em mim. Encaro a verdade que apesar de estar em minha presença, você morreu há muito tempo e isso é tão doloroso quanto à primeira vez em que te perdi. Você mudou para pior.
A jovem sentou-se na soleira da porta e olhando para o vazio da noite, deixou escapar seus pensamentos.
-Eu realmente sinto muito. Muito...
Os olhos do homem procuraram o céu, e enquanto a neve se misturava às suas lágrimas, ele retrucou:
-Não tanto quanto eu... Nunca tanto quanto eu.
Guardando a flauta em suas vestes, ele saltou para o chão e convidou a jovem a se erguer. Ambos mergulharam nos olhos um do outro e apesar de dividirem uma enorme tristeza, suas raízes eram distintas. A dela nasceu durante os anos de fuga, matança e medo.
Já a dele, do abandono e do desamor.
Sem aviso, eles se lançaram um contra o outro e reflexos prateados cortaram a escuridão que foi invadida pelo som e a luz dos aços, que se chocavam como uma dança de réquiem.
Ela era veloz e experiente, mas o flautista passou longos doze anos se aprimorando para esse dia, e apesar de sua alma se partir a cada golpe desferido, seu dever foi cumprido.
A espada rompeu o ventre da jovem, abrindo a fronteira para o mundo dos mortos. Uma cascata rubra foi espargida sobre a neve e em um movimento semelhante ao pouso de um corvo ferido, ela tombou com a face no solo, erguendo a neve maculada pelo carmesim em uma nuvem sobre o mar encarnado que fugia da ferida.
O homem tomou a jovem em seus braços e enquanto observava cheio de tristeza os olhos que tanto amou embaçarem eternamente, sussurrou.
-Sê livre agora e perdoa-me por não ter vindo antes acabar com nossa miséria. Sê livre por nós dois, pois eu serei uma sombra até meu último dia. Serei um escravo honrado e sem alma. Um covarde que jamais poderá caminhar sob o Sol como um samurai e ainda assim os servirá.
Ele castigou a terra dura com a espada da morta, abrindo um leito final para a fugitiva e após enterrar a única felicidade que já sentiu, o flautista retornou com um novo pesar, o maior de todos, ao recanto secreto das sombras.
Kareki: Árvore morta.
Tengu: Criatura fantástica do folclore japonês, cuja lenda remete ao surgimento dos ninjas. Geralmente descrito como agressivo e arrogante, vive nas florestas em meio às montanhas.
Kareki no uta: Canção da árvore morta.
Daruma: personagem do folclore japonês. Um monge hindu que após passar muito tempo meditando, perdeu seus membros sendo incapaz de se movimentar. Figuras do Daruma são vendidas como uma espécie de amuleto, onde a pessoa deve desenhar seus olhos e fazer pedidos. É o equivalente japonês a figura do João Bobo.
Hachidori: Beija-flor.