Lembranças

Numa casa de repouso duas senhoras conversam

___Já se passaram muitos anos mas tem coisas que parecem fazer parte da gente.

___Por que está dizendo isto? Pergunta a amiga moradora da mesma casa. Sente-se curiosa.

As duas senhoras estão sentadas sob a sombra de uma árvore

Lembro-me de coisas lá longe, no passado. Parecem tão vivas!

Como a casa de meus pais, minhas dores de dentes, quando tive caxumba , sarampo. A minha galinha de estimação. As únicas flores que gostei no jardim de minha mãe, das bocas de leões que arranquei e abria só para ver o movimento. Das muitas surras que levei de minha mãe, das muitas vezes que fui arrastada com uma corda no pescoço por ela. E de quando já adolescente fugi de minha casa. Fui embora pro mundo.

___ Credo! por que lembrar coisa tristes? Diz a amiga

___Envelhecer já é doído demais!

___Nenhuma destas coisas são mais tristes para mim do que os amores que perdi. Responde a senhora, olhando para o infinito como se conseguisse ver tudo que estava dizendo.

___Do jeito que fala, até parece que teve muitos amores.

___A senhora fica por um tempo calada enquanto a amiga não aguenta mais de curiosidade. Há uma certa tristeza em seus olhos, sem falar nada levanta e vai embora. Ainda consegue ouvir os apelos da pobre senhorinha que desesperada por voltar ao ócio sozinha lhe diz.

___Onde vai? Volte, venha terminar a história! Não me importa mais quantos amores teve, pode me contar nem fico zangada....

Ela nem ligou ao pedido e se foi.

Deixou para trás a amiga tentado lembrar de algo que a tivesse marcado no passado. Lembrou de seus pais e uma lágrima rolou de seus olhos, lembrou vagamente de sua mãe no frio caixão e depois seu pai descendo a terra. Não restaram muitos em sua vida de única filha , ficou cedo demais só. E sua vida não foi mais que solidão, nem um amor para chorar, nem um filho para amar. Nada ... Nada.

E agora é muito tarde para pensar em mudar alguma coisa na vida. Já não tem mais uma só lágrima. Virou uma cachoeira desesperada, sorte alguém tê-la visto. Sentiu uma mão segurando a sua e caminhou triste em direção a entrada da casa.

Só lhe resta a solidão, e o nada.

Acorda ainda sentindo-se vazia e triste, toma seu café e dirige-se a árvore na esperança que sua amiga tenha voltado e lhe conte o restante da história.

Mas ninguém a espera . senta-se triste e pensativa. Será que perdeu sua amiga?

Não falei por mal. Devo ter falado levada pelas consequências de minha vida. divaga sobre alguns acontecimentos particulares, coisas que deveriam ser lembradas mas ... melhor serem esquecidas. Ainda está triste demais para observar a beleza do jardim em que se encontra. As flores que se abrem ao sol da manhã. Os pássaros que gorjeiam, alguns até fazem ninho no galho acima de sua cabeça. Nada disto importa aquelas palavras parecem que martelam em sua cabeça.

____" Nenhuma destas coisas são mais tristes dos que os amores que perdi."

E eu que não tive nenhum amor! Que droga! Nenhum amor para contar uma história.

Não quer chorar mas é inevitável. As lágrimas teimosas rolam livremente.

Ainda está dentro deste poço de desespero quando escuta uma voz.

___Então, eu trabalhava numa rede de supermercados, fui pra lá depois que fugi de casa. Fiz uma melhor amiga no meu trabalho...

Ela fala olhando para o infinito, nem percebe que a amiga havia chorado. Ou se percebeu não diz nada. Era um domingo e fui dormir em sua casa acordamos e sua mãe serviu como café da manhã , polenta branca com ovo frito e queijo derretido. Não estava acostumada com tantas calorias pela manhã. mas foi delicioso. talvez pelo fato de ter sido feito por uma mãe.

Ela me olhou e disse:

___ Que vamos fazer hoje? Se ficar- mos aqui na certa irão nos chamar para trabalhar.

E eu lhe respondi com uma pergunta:

___ que você sugere?

___Esta havendo um rodeio, vamos para lá?

Respondi:

Nunca estive em um rodeio, mas vamos nesta então!

Ligaram atrás da gente na casa dela e sua mãe disse que já tínhamos saído.

Era sempre assim, se fizesse a vontade dos patrões não tínhamos descanso.

Eu estava com uma camisa ...Hummm...Não me lembro mais a cor da camisa.

Mas estava com uma calça azul céu e sapatos de salto alto preto. Nada a ver com os trajes de rodeio, mas enfim era a minha primeira vez .

Chegamos no local do rodeio, havia chovido , não me lembro muito bem, mas tinha barro, eu acho!

Neste ponto a senhora para a narrativa para ver se a outra está escutando.

Ao ver que ela não perde uma palavra sequer, nem comenta mais nada, ela continua. Não tivemos muito tempo de andar por lá e eu o avistei. Era o mais belo jovem do lugar. Também se tinha outros eu não sei, nem vi não fiz questão nenhuma de procurar. Seus cabelos loiros, os olhos esverdeados...ou eram azuis? As vezes os detalhes me fogem da lembrança. Seu sorriso maravilhoso. Ele me olhou e eu o olhei, não me lembro mais quais foram as suas palavras, mas a aproximação foi inevitável. Neste ponto um silêncio paira no ar. Nenhuma das duas fala mais nada....

Mas logo ela retoma a narrativa

___Há momentos deste dia que não consigo lembrar com detalhes. Para onde foi minha amiga quando ele me convidou para passear ou para onde ele foi quando assistimos o show de Sérgio Reis. O que conversamos , não lembro, rimos eu sei , e nos beijamos. E o beijo foi bom e inesquecível. Voltei para casa e ele voltou para sua cidade. Nos encontramos mais algumas vezes e depois ficamos algum tempo...talvez anos, não sei ao certo sem nos ver- mos.

Algum tempo depois voltei a minha cidade natal e nos encontramos. Porém a diferença entre nossa classe social era muito grande e eu desisti de ser feliz.

___ Como você foi burra! A amiga diz meio sem pensar.

No mesmo instante a senhora se levanta e vai embora.

Dentro do peito o coração grita:

___ Foi um amor que perdeu no caminho da vida. Podia ter sido feliz!

Sob a sombra da árvore a outra lamenta:

Queria ter perdido pelo menos uma vez um amor sequer. Algo bom para relembrar nos dias de hoje... Tem gente que não valoriza as coisas da vida mesmo!

E os dias seguem lentamente...