Era Desses Dias PERFEITOS

Era desses dias perfeitos — climaticamente... Eu digo — o céu se vestia de cinza, daqueles que só se vê no céu mesmo, monocromático, umas nuvens carregadas e pomposas aqui e outras menos gordas ali, sem muito que jorrar na terra. Um ponto mais claro e chamativo ao leste denunciava onde se escondia o sol — não o queria ver mesmo, que ficasse por lá — era desses dias que as abelhas não saem de casa, pois as gotas poderiam vir em torrentes para atacá-las, molham as asas e tiram delas o seu poder mais encantador — ah se eu pudesse voar.

Se eu pudesse voar acho que jamais voaria, diriam que sou uma aberração, não um milagre, diriam que sou doente, não abençoado, me enojariam, não endeusariam.

Que vida!

O outono estralava no ar, as folhas craquelavam no chão. O vento facilmente as expulsavam de perto dos troncos, dizia a elas que não podiam mais voltar aos seus antigos postos, seus cloroplastos já estavam mortos afinal, de nada mais serviam.

Mas o tronco continuava lá, o meristema apical não lhe falhava, sempre a presenteava com galhos e mais galhos, no outono eles mais pareciam tenebrosos sob o céu prateado do que belos quando adornados por folhinhas verdejantes.

Eu sempre passava por debaixo das angiospermas, que ostentavam frutos, regulavam esse dom às suas irmãs de terminação ófita tal qual à sua irmã mais próxima. Sempre me jogava uma maçã aos pés — que gesto mais belo — eu levava pra casa, nunca a lavava, gostava de saber que era o mais natural possível. Sentava-me na frente de minha janela e olhava lá de longe o parque verde que estava e como em uma vida bucólica apreciava o campo e tinha vida simples e modesta. Gostava de imaginar. Mas não era bem assim, moro em uma cidade grande, mais precisamente em um retângulo de concreto que se chama edifício, todos moramos em lugares como esses aqui. Uma extensão cinzenta e fosca de pedra, essa é a cidade, um caos social.

No meio de todo esse emaranhado de cimento com água há, singelo, o parque verdíssimo que passo horas nos fins de semana. Gosto de ir lá, mas pareço ser o único. Lá é belo, apesar de pequeno, tem um tapete de grama macio, árvores frutíferas e um único banco que já me pertence de tanto que fico lá.

E lá estava eu em pleno sábado, sentado no banco marrom de madeira, não era lá confortável, mas o sentimento nostálgico acalentava minha alma. O vento passava por ali, eram quatorze horas, e algo inesperado aconteceu. Acho que a vida tentou me dar um gracejo naquela tarde seca.

Eu por alguns minutos cochilei no banco desconfortável (cochilo em qualquer lugar, afinal) e quando acordei o ar me parecia mais doce.

— Olá.

Soou uma voz doce ao meu lado. Virei-me com truculência, não era sempre que se viam pessoas ali, ou melhor, NUNCA se viam pessoas ali, com exceção a mim é claro. E ao meu lado, no banco, uma figura se mutara. Era linda, uma moça de olhos tenros, de cabelos negros e pele negra. Vestia-se de vermelho um vestido fino e esculpido no seu corpo. Jamais havia visto figura tão bela,

jamais pensei que algo, ali no parque, ofuscaria a visão das árvores, mas ela o fez, sim fez sim.

—... — não consegui expelir uma única palavra sequer. Estava estupefato ( eu nunca ficava estupefato)

— Chamo-me Isabelle — um sorriso largo surgiu na sua boca, deixou-a ainda mais bela.

— Sou Miguel. — consegui falar finalmente

— Esse lugar é magnífico — ela era também — não?

— Sem dúvida alguma. É, em toda essa cidade de pedra, o mais brilhante dos diamantes, costumo dizer... escrever.

— Não teria palavras melhores para descrever — sorriu.

—Venho todos finais de semana, é como mel para meu ser.

— Então presumo que o encontrarei aqui amanhã...

O mundo parou e perdeu a cor, as folhas que estavam a cair de uma árvore ao longe se fixaram no ar, as flores que eram empurradas pelo vento congelaram em paralelo ao chão, os cabelos de Isabelle travaram no espaço ao tentarem acompanhar o vento, o mundo esperou por mim pela primeira vez, olhou-me com olhos benevolentes naquele dia, sorriu em minha direção,deram a esse pobre Miguel o que lhe faltava para preencher a alma.

Aos poucos tudo se coloriu novamente, e as folhas voltaram a caírem, as flores voltaram a subir e os cabelos voltaram a repousar.

Tinha as palavras na ponta da língua. — Encontrará, ah sim.

***

O caminho para casa nunca fora tão belo, silencioso e... Cinzento, tudo parecia mais desfocado naquele dia bem como mais calmo. Era realmente um sinal do mundo para mim. Atravessei a rua, distraído, e um carro quase me toca, mesmo assim não buzinou e nem mesmo pareceu me notar.

Estava tudo tão calmo, estava tudo tão... Bom. Acho que eu havia finalmente me sentido parte do mundo naquele dia. Havia finalmente sentido a vida.

Cheguei a casa e dei um olá nada brando ao porteiro, que fingiu nem me ouvir. Entrei no apartamento frio e escuro com o sorriso ainda no rosto, sentei-me que ficava na beira da janela e observei a lua a banhar o parque com sua luz pálida. Depois de alguns minutos a observar fui me deitar.

Não pude dormir, as imagens de Isabelle vinham em minha cabeça, seus olhos escuros, seu sorriso largo sua voz adocicada, como podia eu me apaixonar tão facilmente?

Mal podia esperar para vê-la, mas demoraria pra dormir, tinha certeza, o tempo passaria lentamente e faria a espera parecer eterna. Mas entre devaneios e sonhos eu dormi. Acordei de repente, sem nenhum resquício de cansaço ou sonolência, estava disposto e animado. Eu iria ao parque eu ira até ela. O que poderia ser melhor?

Vesti-me com uma camisa branca claríssima, coloquei calças jeans azul cor do mar, passei o perfume que o aroma me fazia lembrar madeira e penteei o cabelo escorrido pra trás. Os sapatos foram os que sempre uso, um sapato preto de couro com cadarço branco. Não sei se fiquei bem, mas certamente estava mais bem vestido do que no dia anterior.

Era uma hora quando cheguei ao parque, naquele dia o sol resolveu mostrar a cara, sua luz entrava por detrás das nuvens e chegava branca até mim. O parque não fazia sons, as folhas não se chocavam uma contra as outras, os pássaros não cantavam, o vento não soprava, a grama e as folhar não craquelavam, era só eu e Isabelle. A vida me presenteou, ah sim, que bela essa vida.

Ao longe enxerguei o banco marrom, e lá estava uma cabeça de cabelos negros. Ela parecia estar falando... Mas com quem? Ninguém jamais vem ao parque, é impossível. Olhei ao seu lado e... tinha alguém com ela, cabelos negros e curtos, estava de costas, usava uma jaqueta idêntica a que eu trajava no dia passado. Ora, o que era aquilo? Sabotaram-me, traíram-me, tinha realmente essa pessoa de vir ao parque justo no dia que me encontraria com ela? QUE VIDA!

Cheguei mais perto e chamei por ela, ela pareceu não me ouvir. Estava conversando:

“ — Não teria palavras melhores para descrever — ela sorriu ao homem.

—Venho todos finais de semana, é como mel para meu ser. — ele o disse com expressão passiva.

— Então presumo que o encontrarei aqui amanhã...”

No momento em que o homem disse isso uma dor fortíssima atacou-me o peito, cai no chão na frente deles. Não me viram.

Acordei com um barulho de sirene e um choro agudo.Quando abri os olhos vi que uma ambulância havia entrado no parque sem o menor respeito as flores que esmagara no caminho.

—Foi um enfarto... Ele... — disse um homem vestido de branco.

—Óh, não. Mas...

—Você o conhecia?

—O encontrei hoje aqui, ele estava cochilando e quando acordou começamos a conversar — parecia desolada.

—Sinto muito... ele está morto

Eu estava no chão e ninguém me via.... COMO PODE!!!

COMO.... Antes de terminar meus lamentos eu finalmente olhei bem no rosto do sujeito... ele tinha feições finas e pele branca, cabelos negros e então percebi que sem vida, pálido, de lábios roxo e expressão velada estava morto ali... EU, era eu com quem ela estava conversando, era eu quem tivera o infarto.

O mundo sorriu pra mim coisíssima nenhuma, me desgraçou, apenas me iludiu, fez de mim um mero capacho, que benevolência que nada. O mundo não parou por mim naquele instante do dia passado, o fato era... eu estava morrendo. O porteiro, o carro, o silêncio, as cores... tudo se encaixava, eu havia morrido e estava vivendo a sombra de uma vida que quis ter... eu não tive a quem amar e quando tive a maldição que a vida me pregara se fez... eu morri e jamais amei...

Douglas Moreira
Enviado por Douglas Moreira em 26/09/2014
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