UM ROSTO NA ESCURIDÃO PARTE I
Os sinos badalaram e anunciavam o dia festivo na cidade. Era assim que a população de Águas Claras se comunicava. Os mais jovens ainda se perdem repetindo os sons e tentando codificar enquanto que os mais velhos já sabem até o sexo do falecido quando os sinos tocam as fúnebres badaladas.
Ela saiu de casa pela primeira vez com o rosto descoberto. Sua pele pálida, de pouco ver o sol parecia refletir uma luz nos olhos da população curiosa da cidade que fitavam o rosto de Eugênia, a menina que era envolvida por uma aura de mistério. Ela saía às ruas somente para ir à igreja, sempre na sua liteira e o rosto sempre coberto. Sem mãe, o pai deixava a menina aos cuidados da tia Antônia, irmã mais jovem do homem que controlava a vida na cidade. Estêvão era dono da maior parte das terras e minerava e plantava. Era forte, rosto carrancudo e voz rouca. Impunha-se pela sua presença, simplesmente.
A jovem estava se curando de uma grave doença. Mas ainda tinha um longo caminho a percorrer. Era cuidada por Adolfo, médico idoso, prático, conhecido da família há anos. Cuidava de uma disfunção renal que quase matara a menina. Sempre fraca, ficava a maior parte do tempo em seu quarto, que do lado leste, não tomava o sol da tarde e estava sempre frio. Paulo era seu noivo. Era o único a ver o rosto de Eugênia, sempre na penumbra da casa que vivia de janelas fechadas por orientação médica. Mas se via uma silhueta de formosura à luz daquelas velas. O pai de Paulo era o melhor amigo de Estêvão, e ao nascer, a menina foi prometida ao filho do amigo que já contava com doze anos de idade.
Era o ano em que a menina completava quinze anos. As badaladas eram pela presença do bispo que faria a celebração da crisma nos jovens da cidade. Eugênia estava eufórica por dentro, mas tímida se mostrava assim vez primeira com o rosto à vista de todos. Ela se comprimia ao fundo da liteira tentando não ser alvo da curiosidade alheia. Muitos jovenzinhos seguiam-na, para ver seu desembarque na porta da igreja e matar a curiosidade em contemplar o rosto mais desconhecido da vila.
Era o dia vinte e dois de setembro de mil setecentos e vinte e oito quando se ouviu o choro de criança. Estêvão, andava a passos largos no corredor da grande casa. Suas botas faziam o piso de madeira ranger assustadoramente. Correu ao ouvir o choro. A menina havia nascido. Coçou a testa e a franziu, talvez pensando no trabalho que daria cuidar de mais uma mocinha. Esperava ele um menino, mas não conteve o sorriso ao ver o rostinho da boneca que havia chegado ao mundo. A mãe chorava de emoção quando tocou vez primeira o rosto da garota.
Liteira discreta, sem cores. Branca com alguns riscos de azul marinho, cortina branca fechando a janelinha, carregada por dois fortes escravos desce nas escadarias da igreja. O pai desce e olha para todos. Muitos jovens esperando para entrar, conversando no Largo da Piedade e lança aquele olhar de repreensão para que ninguém se engrace com sua menina. Ela desce levemente, tendo as mãos apoiadas em Bernarda, a mucama, que tenta com as mãos esconder-lhe o rosto. Em vão. Surpreendentemente, Eugênia retirou as mãos da mucama e olhou fixamente para todos. Parecia não ter nenhuma timidez. Olhou em todas as direções, baixou os olhos e sorriu timidamente, mas de maneira sensual. O pai, observando aquilo, passou as mãos pela barba e bigode, segurou fortemente o braço da menina e disse abruptamente:
__ Vamos. Entra.
Entraram pela igreja adentro, ainda vazia nos seus cento e cinquenta lugares. Um grupo tocava música sacra de alta qualidade, num violino, violoncelo acompanhados por um órgão vindo da Europa com inúmeros e grandes tubos. Um clima de céu.
Sentaram-se na segunda fila de bancos, espaço reservado para os jovens que iriam se crismar. Aos poucos, a igreja foi ficando cheia e a celebração transcorreu na mais absoluta normalidade. Na saída, o pai foi abraçado à filha tentando escondê-la dos outros rapazes. Bernarda dava uma espécie de cobertura até que a menina entrou na liteira e foi rapidamente para casa. O pai seguia a menina caminhando e encarando os curiosos. Pôde-se ver os delicados dedos da menina tocando a cortina da janelinha da liteira e olhando a rua.
Eugênia nunca havia visto a cidade de perto. Sempre que ia à igreja, único lugar em que ela frequentava, era dentro da liteira fechada e nunca contemplava o lugar onde morava. Ao fundo de sua casa ela visualizava montanhas e um lago. Do lago podia contemplar a cidade e as torres da igreja, não muito mais. Era seu mundo. Era um imenso casarão que ficava ao final de uma pequena rua, e dali pra frente as imensas fazendas do pai.
Mas aquela noite foi diferente. Eugênia dormiu sonhando com dois olhos castanhos que se cruzaram aos seus, no largo da igreja, assim que desceu e se encaminhou para o templo. Foi pra esse olhar que ela havia dedicado o sorriso.