O Regresso de Maria

Muitas vezes ficava assim a olhar para a alameda de cravos brancos que ligava a casa à rua que se esboçava, lá em baixo. Ganhou o hábito depois de aposentar-se para não perturbar a mulher e as filhas que o preferiam longe dos circuitos domésticos. Ditava as suas ordens dali, sentado na secretária, a ver o exterior através dos vidros sem cortinas. Que pusessem as canas no feijoal, que na ordenha poupassem a Mimosa que tinha mastite, que o farelo dos porcos fosse misturado à lavagem e não distribuído a seco. Depois disto, retirava o relógio de prata do bolso direito do colete e confirmava o usual: dez horas. A Josefa trazia o café já adoçado e esperava, imóvel, que o tomasse. A seguir parava os olhos para lá da janela e, quando já não enxergasse os cravos nem as laranjeiras que marginavam a estrada de terra batida é que ela chegava arrastando o baú dos livros e a mala do bragal, firmando o laço do chapéus, gritando com medo dos cães. Voltava a vê-la tal como em 1932 quando, depois do casamento por procuração, a deixou ali o velho carro de bois do Acúrsio. Mulher valente era ela que arriscou casar sem o conhecer, que ousou cruzar o Atlântico durante 40 longos dias num pequeno cargueiro, que, depois disso, ainda a curar-se de agonias e enjoos, subiu a Serra da Leba para, finalmente, chegar aquele ponto do Lubango onde ele a esperava de capacete, balalaica, botas altas e chicote “cavalo-marinho” na mão. Bem a quis ajudar a subir à varanda mas a emoção prendeu-o ao chão. Nenhuma palavra saiu da sua boca e os olhos, desmesuradamente abertos, à beira das lágrimas, denunciavam o espanto. Maria era bem diferente do retrato, talvez mais alta e encorpada, talvez mais mulher. Foi ela quem, decidida, lhe estendeu as mãos o o osculou de leve na face queimada de sol. Só depois reuniu os criados para a apresentar. Mal tiveram tempo de se conhecer e já ela, prenhe, começava a mudar tudo por ali. Parava quando ele chegava do trabalho já com os candeeiros acesos, velados os rostos pelas sombras, moídos os corpos pela labuta do dia. Depois do jantar é que vinha a conversa. Maria era uma jovem culta para a sua época. Tinha opinião sobre o colapso da Bolsa de Nova Iorque e das consequências em Portugal. Não fora isso, dizia, e teria tentado vir no Graf Zeppelin que deu a volta ao mundo três anos antes. Sim, África era um fascínio antigo, um sonho, um destino fatal. Lia tudo o que apanhava a jeito. Gostava de estar informada. Na sua bagagem havia livros que queria reler como o “Emigrantes” de Ferreira de Castro, edição de 1928, “ Orlando”, de Virgínia Woolf, “ Contraponto”, de Huxley, toda a literatura de Thomas Mann em castelhano e muitas publicações de cordel que colecionava com desvelo. Gostava de poesia lírica e conhecia Camões e Bocage. Apreciava os loucos da Arte Moderna como Magritte, Pablo Picasso, Henri Moore- de quem chegara a ver esboços da “Mulher Deitada”- Amava Gershwin e recordava, emocionada, a “Sinfonia dos Salmos” de Stravinsky. Fora amiga de Raul Brandão mas preferia escutá-lo a lê-lo. Era mais simples a falar, contava. Recordá-la assim, bonita e diferente, capaz de arrostar com as críticas sociais da terra e de enfrentá-lo nas proibições era, para o velho Afonso, uma alegria. Foram felizes até que a tísica a levou depois de um horror que se arrastou por muito tempo. A princípio as ventosas no peito e nas costas, depois as sangrias seguidas de transfusões braço a braço, a tosse e as golfadas de sangue que a deixavam exausta. Depois de muito instada, bebia um caldo leve e ia morrendo sem já poder acudir aos filhos, sem poder gerir a quinta e o serviço dela. Recusou os sacramentos e acabou nos braços de Afonso, seu amor descoberto, como lhe chamava na intimidade. Foi tudo triste, do funeral ao luto. Depois, urgia que outra patroa pusesse ordem no pessoal e aliviasse o dono das ânsias juvenis. Deu Afonso, portanto, outra mulher aos seus quarenta anos. Robusta, tosca, iletrada. Em tudo o avesso da primeira Maria. Fizera nela o resto dos filhos e, após o jantar, ficavam em silêncio até que ele demandasse o quarto em que, deitados na vastidão da cama, faziam sexo e dormiam. Rodou o tempo, por causa dos queijos a quinta ganhou fama, enriqueceu e casou os filhos da primeira Mulher. Restam consigo os desta ninhada e, já velho, aguarda, sereno, pelo fim do caminho. Rever os anos trinta do século vinte, voltar a sentir ferver o sangue na euforia das memórias da sua juventude ainda era um exercício animador. Por isso se recolhia à cadeira perto da janela e olhava a sua terra até que, em sintonia com o seu coração, a memória a trazia, de novo afogueada, a subir a alameda das flores. Exatamente como da primeira vez.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 18/09/2014
Reeditado em 29/04/2015
Código do texto: T4966638
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