Quando o amor acaba
Criatura de hábitos, todas as noites plugava o celular na tomada e ajustava o horário. Na manhã seguinte, rolava até a beirada da cama e tateava a semiescuridão da manhã até que os dedos reconhecessem o aparelho pedindo dez minutos a mais. Na primeira vez em que o trajeto foi interrompido acreditou que ainda sonhava. O corpo dele, sólido e inesperado, brotou como os arranha-céus que surgiam do nada alterando a paisagem em seu caminho diário. Curto o tempo do espanto. A memória da noite passada vivida em relembrança, reencontro e descoberta ativou-se de imediato. Não o conhecia de fato, mas por algo que nunca soube explicar, ela o sabia. Como se cada dobra de pele, cada marca estampada pela dor ou pelas luzes da vida sempre tivessem sido de seu conhecimento. Abraçou-o devagar depositando um beijo nas costas largas. Mais tarde ele diria que aquele gesto repetido inúmeras vezes pelo tempo em que ficaram juntos, era como um elogio. Ela lhe disse que os lábios e os olhos pediam por ele e não sabia ao certo onde começava o beijo, onde tinha início o toque. As mãos deslizavam e sentiam-se acariciadas como se o gesto e a ternura viessem dele. Descobriu logo que havia entre eles um campo de energia circulante ainda não definido. Não havia dúvida: eles se sabiam, haviam se reencontrado de outras vidas, outras dimensões, onde talvez apenas os sonhos e as esperanças fizessem sentido. E porque a vida tinha sido dura com ambos, acreditaram que a busca havia terminado. Por muito tempo tiveram-se assim como se mais nada importasse, por muito tempo teceram de fios delicados e ainda assim vibrantes, uma capa protetora que os deixava invisíveis, que os mantinha a salvo das dissonâncias da vida, dos destons das arestas...
Quando se deu conta havia aberto as portas, afastado as cortinas e cantava, como um pássaro que viveu em silêncio e não tinha nem habilidade nem treino, mas precisava cantar. Nunca soube quando seu elogio e seu canto deixaram de ser necessários. Nunca soube o que de fato corroeu a construção que parecia sólida e não tinha mais as marcas da criatura de hábitos, com seus roteiros. A cama tornou-se um território devastado, o sinal de alerta do relógio tornou-se inútil porque conciliar o sono tornou-se impossível
A vida, no entanto, não pergunta, não pede licença e nem se desculpa. A vida anda, sempre muito rápido quando precisamos de tempo, sempre se arrastando quando não suportamos mais...
Raquel Domingues Pires – 10/09/2014