DIÁRIO DE UM BLEFE - PARTE 4

Estávamos andando pela praia do Recreio, mais ou menos na altura do posto 9 e apesar da noite estar linda e a lua majestosa no céu daquela noite, estava longe de ser um encontro romântico entre um casal. É claro que eu cheguei a sentir muito carinho por Daniel, mas o seu distanciamento de mim e suas explicações nada esclarecedoras, me jogaram direto nos braços de Henrique.

- Poxa, Daniel você sumiu.

- É! Eu tive uns problemas para resolver e na verdade ainda tenho...

- Se eu puder ajudar você...

- Ângela, eu sei que não fui um companheiro presente e justamente num momento tão importante que é o início da relação.

- Continuo sem entender...

- Eu vou te contar algo, mas por favor, não fique chateada ou aborrecida por ter te omitido este fato. Não suportaria a sua indiferença ou desprezo.

- Calma, Daniel. Você sabe que eu não sou assim... É tão grave assim?

- É e não é.

- Cada vez entendo menos. Explica por favor.

- É grave porque eu tinha que ter te contado antes de nos envolvermos e não é grave porque tem cura. Bem, pelo menos eu acho que sim...

Com esta declaração, meu coração bateu mais forte e a primeira coisa que me passou pela mente, foi ter me relacionado com um homem com algum tipo de DST ou com alguma outra doença muito grave. E mesmo tendo me prevenido nas poucas relações que tivemos, é sempre um risco que se corre. Tentei manter a calma para o clima não ficar mais tenso do que já estava e pedi a Daniel que me contasse tudo.

- Ângela, eu sofro com depressão faz mais ou menos um ano.

Nossa, quando ele disse isso, respirei aliviada por pensar ser algo mais grave, apesar de conhecer de perto a gravidade desta doença, mas pelo menos não era algo contagioso ou tão incurável assim. Não que eu temesse por minha vida, mas pela vida do meu filho (caso me perdesse) no qual dependia inteiramente de mim. Com esta declaração pude finalmente encaixar o quebra cabeça, pois era a peça que faltava para eu entender o que achava de estranho no olhar de Daniel e que não sabia explicar. Era o vazio na alma. Então ele continuou.

- Eu não sei o que veio a desencadear esta doença, mas eu só sei que ela é insuportável e torna a minha companhia comigo mesmo insuportável também. Por isso o meu sumiço por alguns dias.

- É eu sei bem como é... Sinto muito, mas esse quadro pode ser mudado. Você vai conseguir.

- Eu não sei...

- Já faz algum tipo de tratamento? Usa algum medicamento ou faz alguma psicoterapia?

- Psicoterapia não, mas uso alguns medicamentos que às vezes parecem me ajudar e outras parecem piorar as coisas.

- Mas você mencionou que faz mais ou menos um ano e você está separado de sua ex-esposa há dois anos. Será que não sente a falta da sua família? Não sofre por causa disso?

- Não! Muito pelo contrário. Fui fiel a ela os quinze anos de relacionamento que tivemos. Ela era uma mulher religiosa e vinda de uma família muito tradicional e conservadora. Nosso relacionamento sexual era o típico “papai e mamãe” e depois que nosso filho nasceu as coisas só conseguiram piorar. Apesar de amar muito o meu filho, acho que aquele relacionamento laçado a tantos tabus me fez mais mal do que bem. Eu cansei do jeito como estava vivendo. Vendo a vida passar por mim sem sentir muitas emoções boas, e finalmente quando consegui me libertar, eu caí nessa maldita doença que me impede de fazer tantas coisas que sempre desejei fazer.

- Nossa! Que coisa chata.

- E durante este tempo todo que estou neste “cai-levanta”, você foi a melhor coisa que me aconteceu, por isso eu tive medo de te contar logo no início, por temer sua reação e perder você. Aliás, você é a melhor coisa que me aconteceu nestes últimos dez anos, tirando a alegria do nascimento do meu filho e a felicidade de ser pai.

Comecei a morder o lábio inferior, o que significava que eu não estava gostando muito do rumo que a conversa estava tomando, pois sabia onde ele iria chegar. Permaneci em silêncio deixando apenas Daniel desabafar, temendo ouvir o inevitável.

- Então, Ângela... Eu sei que não agi certo com você, pois fiz você entrar em um relacionamento te prometendo tantas coisas boas, sendo que tem dias e na maioria deles não sinto nada do tipo. Você veio como uma luz na minha vida, pois depois que te conheci até passei a ter algumas esperanças, coisa rara nos meus dias. Eu sei que não posso pedir para você ficar comigo por estar deste jeito e nem quero que sinta pena de mim, mas sinto um aperto muito forte no peito quando cogito a possibilidade de você sair da minha vida. Você é uma mulher adorável, linda e nem sei como consegui te achar. Acho que foi o destino, eu não sei... Nem sei como você pode estar sozinha sendo essa mulher encantadora do jeito que é. Mas, sei que deve ter outros pretendentes em melhores condições que a minha, e não posso empacar sua vida, ao mesmo tempo em que não quero te perder. Você tem todo o direito de se sentir confusa, por isso quero te perguntar se posso continuar te ligando pelo menos?

- Si-sim... Claro que pode.

Protelei, dei uma fugida básica pela tangente, porque realmente eu não sabia o que dizer, mas não mencionei Henrique para Daniel. Fui para casa e fiquei pensando em tudo o que Daniel havia me falado, e apesar de sentir muito pela situação dele, o meu coração batia por Henrique. E isso tudo, mais uma vez me leva a pensar como são as coisas da vida e a influência que tem as nossas decisões tanto sobre as nossas vidas, quanto as das pessoas que conhecemos. Se Daniel não tivesse optado por omitir a situação dele, eu não teria me sentido carente, não teria voltado a jogar no site e Henrique não me procuraria também. O medo de Daniel nos atrapalhou e não a sua doença. O medo realmente nos limita muito...

Depois de muito pensar, decidi que não poderia ficar com Daniel apenas por compaixão, apesar de ter muito carinho por ele. Eu poderia até vir amá-lo se não tivesse Henrique de novo na minha vida. Por mais que fosse doer em Daniel a minha decisão de apenas oferecer-lhe a minha amizade, eu precisava seguir em frente.

Alguns dias após a conversa que tive com Daniel, comecei a achar Henrique um pouco distante, menos vigoroso e empolgado em relação a nós. Mas, achei que ele estava tendo problemas em terminar com Dalila devido ao seu temperamento agressivo. Mas, era o contrário que estava acontecendo... Henrique me telefonou e disse que além do médico dizer que o estado de Dalila estava piorando, ela parecia estar sentindo Henrique partir da sua vida, e começou a amolecer o seu coração. Relatou que Dalila estava voltando a ser a mulher carinhosa que ele conhecera, estava mais tranquila, não brigava mais e confessou estar em dúvidas quanto a larga-la. Confessou também não amá-la como amava a mim, mas estava dividido, afinal estavam juntos há cinco anos. Eu entendi o recado de Henrique e nem podia acreditar no que estava acontecendo na minha vida. Desligamos o telefone e me lembro de ter chorado muito naquele dia. Henrique não entrava mais no site de jogos até que um dia ele resolveu encarar a situação e o meu telefone tocou e atendi:

- Oi amor.

- Oi. – silêncio-

- Pode falar Henrique.

- Acho que você já sabe...

Meus olhos encheram de lágrimas novamente naquele momento.

- Sim, eu já estava imaginando.

- Ângela, por favor, me perdoa. Você merece tanto ser feliz... É a mulher que eu sempre sonhei em ter, mas eu não posso deixar Dalila no estado em que ela está. Ao mesmo tempo em que não posso pedir que você espere por mim, porque além de estar empacando a sua vida, seria como estar esperando a morte dela.

- Na-não, mas eu não desejo isso.

-Eu sei que não. E nem eu desejo também.

-Me responde uma coisa?

-Pode perguntar.

- Vocês voltaram a ter um relacionamento de casal? Você sabe... Ela te procurou?

- Ângela, por favor, não faça isso com você mesma. Não complique mais as coisas para mim, não torne tudo mais doloroso e difícil do que já está sendo.

Eu mal podia acreditar naquela realidade que caía fria sobre mim e me sentia novamente despencando do céu ao inferno. E sem conter mais uma vez as lágrimas, perguntei:

- E como ficaremos no site?

- Ângela, eu me conheço e sei o que sinto por você. Vamos terminar nossa amizade no site também, pois não conseguirei só ser seu amigo por muito tempo. Por favor, eu sei que te meti nisso tudo e sei que também está sofrendo muito. Eu gostaria que acreditasse que também estou sofrendo, do meu jeito, mas estou! Mas, não tenho coragem de dar um desgosto tão grande a Dalila. Não nas condições em que ela está. Somos fortes não somos Ângela?

E chorando muito eu respondi:

- Não! Eu não sou forte não!

E Henrique percebendo que eu iria desmoronar antes de desligar disse a última frase que eu ouviria de sua boca.

- Eu sempre amarei você!

Desligamos e eu de fato desabei. Nada fazia sentido algum naquele momento para mim. Não entendia porque as coisas tinham que ter tomado aquele rumo. Eram muitas perguntas e poucas respostas. A dor de perder um grande amor não me permitia ver nada com clareza e eu só conseguia pensar na dor e parecia que tentar entender as coisas só as fazia piorar ainda mais.

Mas hoje após dez anos isso tudo ter acontecido, o meu peito já respira mais em paz. E minha vida seguiu com Daniel. Não consegui me envolver emocionalmente com ele logo após o término com Henrique. Mas a ironia da coisa é que eu pensando em ajuda-lo na época com minha amizade, foram a sua amizade e carinho que me ajudou muito com minha recuperação. É claro que houve a minha fase de “luto amoroso”, onde me isolei de todos e de quase tudo, mas mais uma vez encontrei forças na minha semente. Encontrei forças para voltar a caminhar graças a outro amor. O meu amor por meu filho me soergueu.

Com o passar do tempo fiquei mais aberta aos carinhos de Daniel e pude deixa-lo entrar totalmente na minha vida. Vamos completar cinco anos que estamos casados, no mês que vem. Também encontrei forças durante o meu curso na faculdade e hoje sou psicóloga formada. Formei-me na área da Neurociência e sou fascinada pelos mistérios que envolvem a Psiquê humana. Hoje posso dizer que sou uma mulher realizada em todas as áreas da minha vida. Exerço a profissão que amo, tenho uma família, um lar, um filho que sempre desejei ter e um marido que me completa e que me ama.

Eu admito que os sentimentos que sentia por Henrique eram mais fortes, mas já me convenci de que não há plenitude neste mundo. Confesso que às vezes ainda me pego pensando, como seria a minha vida hoje se estivesse com Henrique. Se seria essa paz... Éramos a chama sobre a palha, inflamávamos tão rápido que depois era duro suportar o gelo da distância. Mas as questões não param por aí, também me pergunto como teria sido, se eu não o tivesse conhecido. Será que teria conhecido também a Daniel? Pois, foi por causa de Henrique que entrei naquele site de relacionamentos... Será que Henrique teve que atravessar o meu caminho para fazer o de Daniel cruzar com o meu? Porque era assim que teria que ser? E se assim for, então somos uma espécie de cobaias do destino? A minha faculdade eu voltaria a cursar com certeza, mas não com tanta rapidez e facilidade que consegui terminar após ter pago as minhas dívidas com o dinheiro dos jogos...

Essas questões existenciais vez ou outra ainda vem me assombrar, principalmente quando vejo meu filho sorrindo e brincando com Daniel na areia da praia ou em outro lugar. E por falar nele, Daniel fez psicoterapia por um tempo, conseguiu um bom tratamento e melhorou bastante. A opinião ainda é bem dividida em relação à cura total da depressão. Alguns alegam ser possível e outros dizem que sempre haverão recaídas em algum momento da vida. Como profissional nesta área eu tenho a minha opinião formada sobre esse assunto, mas teria que abordar uma série de teorias para explicar melhor.

Daniel é um marido maravilhoso para mim, de fato o homem que sempre quis como companheiro, mas às vezes sinto que ele tem recaídas e tenta esconder de mim. Tem dias que o olhar dele volta a perder o brilho novamente, mas tento fingir que não percebo e tento animá-lo com as coisas que sei que fazem bem a ele.

E quanto a Henrique... Ah, Henrique Ricardo. Fizemos o que propusemos a fazer, ou pelo menos fingimos que fazemos. Realmente depois daquele dia no telefone, nunca mais nos falamos por qualquer meio. Nem e-mails, telefones, pelo site, nada... Mas, às vezes quando jogo, caem comigo alguns parceiros que apesar de avatar e Nicks diferentes, tenho uma forte sensação de estar jogando com ele. O jogo é o mesmo, as passagens das cartas são idênticas, tudo lembra o seu jeito único de jogar. Nunca nos falamos, nem um cumprimento, apenas jogamos e deixamos nos levar pela sintonia que sempre nos envolveu. E pode parecer estranho, mas é como se cada jogada fosse uma troca de carinho e até mesmo de carícias. É como eu sinto. Daniel nunca soube de nós e penso ser melhor que assim permaneça. Quanto a Dalila, eu sei que apesar do estado clínico dela, ainda está com Henrique, pois Luciana me disse ter visto eles há uns seis meses atrás fazendo compras em um mercado.

Sabe? Acho tudo isso uma ironia tremenda, pois o homem que me ensinou tanto a ganhar e que me fez beber a felicidade em altas doses, é o mesmo homem no qual eu tive que aprender a perder, mas em doses conta gotas de tristeza. E no jogo da vida quem blefou melhor? Acho que fomos bons jogadores, e quando tudo dava indícios concretos que iríamos receber o nosso troféu da vitória, aconteceu a maior virada de todas... Sim, isso acontece muito, só não esperava que fosse em um momento tão próximo do fim da jogada. Talvez eu me considerasse boa, mas falhei ao esquecer a maior lição de todas, que é nunca contar com a vitória antes do tempo, por mais que tudo indique que a jogada esteja ganha. Grandes viradas realmente acontecem, principalmente quando blefam melhor que nós. E a vida blefou bem melhor com a gente...