Amor de Memória
Soluços e lágrimas contidas, assim ele continuava lendo mais uma carta da mulher que tanto amava. Apareciam os primeiros borrões de tinta no papel, manchados pela sua saudade transbordada. Agarrou-se com hostilidade ao pedaço sólido de seu amor e chorou copiosamente.
“Acorda querido, é só um pesadelo”! Respirou fundo e olhou ao seu lado secando o rosto molhado, quando percebeu a presença de uma mulher. Mas ela não era tão bonita quanto aquela que ele sonhava todas as noites. Essa, tinha cabelos claros, curtos na altura dos ombros e ondulados, não era alta e também era um pouco mais corpulenta. Olhava para ela como se fosse a primeira vez que a visse. Ela sorriu e disse:
“Amor, o que está acontecendo com você? Até parece que nunca me viu”.
Os dois caíram-se em gargalhadas e ela deu um pulo em cima dele abraçando-o com tanta força que ele não foi capaz de falar mais nada, apenas sentiu o calor do corpo daquela mulher que o tratava com tanto carinho.
Ele levantou-se e foi para o banho. Fechou os olhos em baixo do chuveiro e toda saudade voltava aos poucos angustiando seu peito. Ele via aquela jovem mulher tão linda, de cabelos negros, longos e cacheados, olhos castanhos tão brilhantes quanto o raiar do sol em dia de inverno e um corpo magro e elegante. Ela usava um vestido azul turquesa, de lese, rodado e mangas curtas com ombreiras. Parecia uma boneca.
Muito confuso ele estava, não consiguia entender como poderia ser sonho se ele tinha lembranças de momentos com ela. Certa vez, ele chegava do trabalho bastante cansado, e sua amada estava sentada na varanda cantarolando desafinadamente e quando o viu saltou da cadeira e pulou em sua cintura abraçando-o com as pernas. Ele jogou a maleta no chão e a levou para dentro da casa, grudados um no outro como se nada mais importasse, todo o seu cansaço sumia nos beijos daquela mulher.
“Afonso, o café está pronto! Esse seu banho está demorado demais”!
Afonso? Esse era seu nome. Sentou-se frente a frente com a mulher carinhosa, assim a chamava em pensamento até descobrir seu nome.
“Meu bem, sei que não está sendo fácil para você. Uma rotina de tanto trabalho foi estressante e é por isso que você está se aposentando. Precisa fazer outras coisas para usar seu tempo”.
Alguém bateu palmas e gritou: “Dona Virgínia, correspondência”!
Virgínia! Esse era o nome da amável criatura, pensou ele.
Tomou café e voltou para a cama indisposto. Todo seu corpo doía e sua cabeça rodava como se tivesse bêbado. Embriagado ele sentia-se com as lembranças da mulher que o fazia queimar de desejo. Já não podia conter a dor da saudade. Sozinho no quarto revirou gavetas em busca de respostas. Encontrou a certidão de casamento assinada com os nomes Afonso e Virgínia. Fez a conta e soube que era casado há 30 anos. “Mas como? Não lembrava dela. E os filhos? Será que os tinham? E a vida? Passou desapercebida diante de seus olhos?” Entrou em pânico e aos prantos chamou Virgínia.
“Meu querido, acalme-se, estou aqui! Hoje você não me fez perguntas, mas já tem alguns dias que você acorda chorando e confuso, me olhando como se não me conhecesse e sempre dorme quase o dia todo, depois que lhe conto sobre nossas vidas. Não tivemos filhos. Nos conhecemos e nos apaixonamos de maneira tão forte que só vivemos para nós mesmos, mas nós trabalhávamos e agora estamos tranquilos financeiramente.”
“Mas não entendo o motivo de não me lembrar de você!”
Virgínia, com olhos cheios de lágrimas, pegou em suas mãos e levou-o ao médico.
Dias depois, Afonso estava mais calmo por causa de alguns remédios que tomava. Então, retornaram à consulta e souberam através dos resultados de exames, que ele estava com Alzheimer. Ao receberem a notícia, diante do médico, Virgínia o abraçou e assim ficou por longos minutos.
Chegando em casa, Afonso parou no portão e ficou com olhar perdido na rua. Virgínia sentou-se na cadeira da varanda e ficou a observar o marido. Ele voltou-se para ela muito sério e ressentido pelo que descobrira e resolveu entrar. Ela, sob o impulso costumeiro da juventude, pulou da cadeira e abraçou o marido com as pernas em sua cintura.
Afonso sentiu queimar o desejo por aquela mulher. Sentiu seu cheiro e por alguns instantes voltou-lhe as lembranças. Era ela, sua esposa era a mulher de seus sonhos! Mudada pelos anos e de cabelos mais curtos e claros pelas tinturas, mas ao encará-la viu o brilho de seus olhos como um raio de sol em dias de inverno, como outrora.
E assim viveram. Entre os sonhos de Afonso e suas angústias, também haviam momentos de recordações que Virgínia desfrutava ao máximo que podia, pois sabia que esses breves momentos é o que restava de seu amor.