O lenço
O menino olhou assustado. Não imaginara que a presença dela lhe causaria tal reação. Encolheu-se todo na sua cadeira e ficou ali, parado, quieto, sem coragem ou sem ânimo para dizer-lhe palavra. Ela, todavia, parecia alheia a tudo, inclusive a ele. Passou como sempre, em silêncio, com os olhos baixos e a tez pálida e calma. “ O que via nela, afinal?” – pensava ele. A mulher era bem mais velha, quase chegando aos 45 anos. Tinha uma beleza pacata, nada que fosse atraente ou impressionante. Além disso, era casada, o que já era motivo suficiente para afastá-lo. No entanto, o fato parecia aguçar-lhe mais ainda a curiosidade juvenil, que lhe acabava por atiçar as fantasias. Moço ainda, ele não contava mais que dezoito anos. O rosto, porém, era de uma criança, pois faltava-lhe a maturidade e os bigodes. Os cabelos castanhos e lambidos, dava-lhe, mais ainda, o ar de inocência e infantilidade. Passava horas em frente a sapataria onde era assistente de sapateiro, olhando os cantos da rua, espreitando as esquinas, imaginando vê-la passar com as compras ou com o pão. Mas ela raramente passava e, quando passava, ele estava ocupado com alguma encomenda. Porém, naquela tarde, fora ele surpreendido pela presença repentina da senhora, que entrara na sapataria e trocara algumas palavras com seu chefe. Ele a olhara, porém desviou os olhos com rapidez, temendo que ela pudesse vê-lo e suspeitar de seus sentimentos. Prendera-se a cadeira e não saiu nem mesmo quando ordenado. Ficou ali, parado e mudo. Foi só quando ela saiu que conseguira levantar-se e ir para os fundos da loja, mas não sem antes olha-la mais uma vez. Vira as suas costas, que não eram mais atraentes que seu rosto, mas que era o máximo que ela mostrava do seu corpo. Sentira-se estremecer e entrou, sobre os gritos do rabugento patrão, nos fundos da loja onde funcionava uma oficina. Passara o resto da tarde com os pensamentos nela, nas suas graças e nos seus olhos, que de tão castanhos, quase refletiam o sol. Também passara a noite pensando nela e não conseguiu dormir, nem mesmo cochilar, sem que a imagem dela lhe aparecesse na cabeça. Cansado, acabou por acordar muito tarde e atrasar-se para o trabalho. Saiu correndo o máximo que pôde, sem olhar para os lados, segurando o chapéu nas mãos. Distraído, bateu-se a algo que lhe derrubou no chão.
-Desculpe-me! – Disse ele ainda atordoado. Levantara-se tonto, nem olhou para a pessoa em quem se esbarrara.
-Não olha por onde anda?
-Me perdoe, estou atrasado...
-E só por isso podes sair a bater-se nas pessoas?
-Não, eu...- Levantando os olhos, notara o jovem de quem se tratava e sorriu lento, desapercebido.
-Não é você o jovem da sapataria?- Então ela o conhecia? –pensara. E ele achando que ela mal o notara naquele dia.
-Sou eu sim, senhora. Queira me desculpar.
-Não tem problema, mas tome cuidado, meu jovem. E se tivesse caído no meio da rua?
-Do jeito que estou atrasado...
-Vá, não lhe tomarei mais o tempo. – Ela virara as costas ainda ajeitando as compras nas mãos. Ele, ao invés de seguir, parara ali. Segurando o chapéu na mão, ficou olhando-a afastar-se e não se mexeu até que ela virou a esquina. Olhando o chão, viu que havia um lenço de seda abandonado ali. Abaixara-se de imediato e travou nas mãos o lencinho mimoso. Estava com o perfume dela e parecia também conservar a suavidade de suas mãos. Bordada delicadamente, as iniciais MJ figuravam no canto, destacando-se no branco alvo. Intentara entregar-lhe o lenço, mas deu por si e lembrou-se que estava atrasado. Depois de ouvir uma longa lista de insultos do patrão, o mancebo trancara-se na oficina e, enquanto trabalhava na confecção de solas de sapato, olhava para o lencinho de seda, preso em seu bolso. Planejara sair da oficina e entregar o lenço, mas lembrara-se que não sabia onde ela morava. Maquinara, maquinara... até que, como um estalo, surgira-lhe a ideia. “Se ela viera a sapataria, disse ele, é porque deve ser cliente.” O rapaz ganhou novo ânimo e terminara o trabalho com rapidez e vigor que surpreendeu o velho sapateiro. Terminado o seu serviço, o jovem entrou a procurar nos registros da loja o nome da moça. O sapateiro, sem desconfiar de nada, achava que o rapaz estava querendo se redimir do atraso arrumando as agendas e não perguntara nada. Com olhos ávidos, ele procurava nas intermináveis listas algum nome que combinasse com as iniciais do lenço. Mas eram tantos, que chegou até a desanimar. Mas voltava ao labor ao lembrar-se de que, se encontra-se o endereço, poderia entregar-lhe o lenço e, quem sabe, arrancar-lhe um sorriso e/ou um gesto de agradecimento. Ou nem mesmo isso, pois contentar-se-ia até com um insulto, se ditos por aqueles lábios. Depois de horas olhando papeis, finalmente encontrara um nome. Maria Júlia... um nome simples, porém forte e gracioso. Anotou o endereço em um pequeno papel e, recolhendo o chapéu, saíra com a desculpa de visitar um cliente. Tomando a rua principal, deu ele de cara com a imensa casa de grades pretas já envelhecidas e um lindo jardim coberto de rosas brancas e frescas. Se agarrou a grade, olhou pelas gretas, procurou por um sinal de qualquer gente, mas nada apareceu. Bateu com o cadeado contra as grades, mas ninguém apareceu. Pensou que ela pudesse ter saído, ou que estivesse dormindo. Quando estava para tentar mais uma vez, viu um vulto figurar na sombra dos roseirais e imaginou que ela o havia visto da janela. Ficou angustiado, mas estava também alegre. Pegou o lenço do bolso e prendo-o na mão. Foi então que a viu, fresca, jovial, linda aproximar-se do portão e olha-lo surpreendida.
-O que faz aqui, meu jovem?
-Desculpe incomodar, senhora.
-Traz alguma encomenda? – Ela abrira o portão e o fizera entrar no jardim. Só aí ele a encarou. Estava realmente linda nessa tarde, mais ainda que em seus sonhos. A palidez lhe fugira das faces dando lugar a um fulgor leve, brando, que conferiu-lhe certa vivacidade. Também as roupas pareciam mais bonitas, desenhando o talhe, deixando entrever os ombros e o colo alvo. Os cabelos estavam soltos, caídos em ondas pelos ombros. Negros como a noite que começava a se anunciar, davam-lhe ainda mais graça aos olhos. Ele demorara a responder tamanha fora sua surpresa ao encontrá-la.
-Não... eu...eu...
-Diga logo o que quer, tenho muito a fazer.
-Vim trazer-lhe isso.- Estendera o lenço, que agora estava molhado de suor.
-Meu lenço...
-Deixou-o cair quando nos esbarramos.
-Ah sim! Muito obrigada, meu jovem. – Ela esticou a mão para alcançar a dele e o lenço que estava na ponta de seus dedos. Trêmulo, ele deixou que as pontas dos dedos dela encontrassem as dos dele. O toque despretensioso causou-lhe tal sensação, que ficara pálido de imediato. Seu coração quase saiu a saltar pelo chão. Tudo isso se passou em segundos, que, aos seus olhos, pareceram uma eternidade.
-Por nada...
-Mais alguma coisa? – Fria, ela não parecia pretender esticar aquele diálogo. O menino a olhou mais uma vez e, sem coragem de dizer ou sorrir, deu um tchau tímido e a viu afastar-se do portão. Apesar de breve, aquele foi o mais genuíno encontro que já tivera. Desceu a rua aos saltos, quase tropeçando na própria alegria. A sensação foi tão graciosa, que jamais conseguira reproduzi-la, nem no ardor dos amores que viria a ter, nem nas suas fantasias mais ardentes. Nada como o primeiro amor para despertar as mais incríveis sensações no coração de um jovem mancebo.