Se eu estivesse vivo
– Se eu virasse um zumbi, você me mataria?
– Como que mata zumbi?
Travis e os dilemas, este cara não pára com isso. Muitos deles são frutos de uma infância prolífica em pensamentos. Eu diria que o cara é uma pessoa de mente aberta, mas estaria mentindo. A mente do indivíduo é escancarada. Pergunto de onde vem tanta imaginação, a resposta sempre é a mesma: “Sei lá”. No entanto, sempre temos nossos palpites. Um deles é o de que a infância não tão cheia de laços afetuosos tenha gerado maior tempo de ócio e reflexão. Outro é que o papai noel despejou uma substância radioativa em suas vias nasais de Travis dormindo, enquanto tirava a poeira da chaminé da própria vestimenta grossa e vermelha e comia também biscoitos. Se não fosse os dilemas talvez ele não tivesse amigos. Tem alguma coisa a ver com o carisma dele.
O simples motivo de eu estar fazendo isto tudo é a auto-satisfação. No caso de eu lograr sucesso em meu objetivo central, minha vida se transformará radicalmente. Estará feita, com certeza. Nem a morte é algo que me impeça de tentar cada vez um pouco mais. Pode parecer fútil, morrer sem necessidade, mas é mais profundo do que imagina. Mentalize um lago bem profundo, onde uma pedra jogada vai pro fundo. Então, o topo deste acontecimento realizado é mais profundo ainda.
Não que eu vá morrer, mas não posso negar fatos, os riscos são exorbitantes.
E também, depois de terminar isso, morte não mais será uma preocupação.
– Todo mundo sabe que precisa acertar a cabeça. – explica melhor. – Se você virasse um, eu o mataria. – acrescenta.
– Valeu... Eu acho. – continuo andando e dou corda ao meu raciocínio: – Mas, zumbis já estão mortos. Ninguém morre duas vezes.
Nadando numa piscina de tubarões, à 300 km/h, em queda livre, escalando o monte Everest, enfim, qualquer coisa que esteja fazendo, Travis sempre virá com um dilema novo. Lembro de alguns, como o da vez em que fazíamos mountain bike há muitos metros do nível do mar: “Prefere ficar tetraplégico ou perder os braços?”. A resposta indicaria se você prefere sua aparência a sua saúde. Isso é o que Travis diz. Ele pensou nisso quando pensou em cair da trilha.
Eu gostaria ou não de ser imortal? Mas este foi de longe o mais fácil de ser respondido. Mentalize o tédio eterno... Pronto.
– Mas tinha que ser o Simon mesmo, levando tudo ao pé da letra. – comenta, olhando para baixo, para mim, para Simon.
– Ei, cuidado aí. Quase me derrubou agora. – advirto, olhando para cima, para ele.
– Foi mal, cara.
– É bem facinho de repetir isso. Cuidado aí. Esse negócio escorrega que nem salame com gel.
Outro motivo de eu estar fazendo isto, é a fama. Talvez não a fama do jeito genérico que está pensando: “luxúria, cifra obesa e narcóticos”. Supondo que isso seja plausível, afinal, alpinistas não recebem o devido reconhecimento, e é até bom não ser cercado por fãs idiotas e paparazzis. A fama da qual me refiro é o prestígio não globalizado, aquela que não envolve dinheiro e poder, e sim aquela que engloba o registro de uma história e orgulho para as gerações descendentes.
– Eu nunca te mataria. – falo seco.
– De onde tirou esta? Eu também não te mataria, já tá ficando louco!? – o tom daquela pessoa que se sentiu traída e se perdeu na confusão da vida nova. – Oxigênio já tá fazendo falta!? Só estamos a 4.500 metros.
– Tô falando dos zumbis... – explico calmamente. – Cuidado aí, cara, quase me derrubou de novo! Não faça muito esforço, olhe a altitude! 4.500 caralhos de metros!
– Por que não me mataria? Não gosta de mim? – estaciona por um tempo e gira o pescoço um quadrante, encarando-me com o rabo do olho.
O negócio das altitudes extremas é que o ar é extremamente rarefeito. Somando este fato ao frio igualmente extremo, tudo vai de ruim a pior a cada pegada impressa. Qualquer esforço maior do que o exigido o leva a sérios problemas físicos. Seu pior inimigo então será a fadiga. Mas, caso se esforce menos do que o preciso, não demore muito. O seu pior inimigo será o gás oxigênio. Não é simplesmente escalar a merda.
Ainda falando sobre morte, o pior de escalar são os corpos daqueles que uma vez tentaram. Corpos desde 1924, como o de George Mallory. Ou corpos mais recentes, mas dificilmente algum totalmente deteriorado, por causa da temperatura criogênica. Parecem vivos e mortos. Corpos de homens e mulheres jovens e de meia-idade, de corpos atléticos e enrolados em casacos. Alguns pendurados em cordas, outros revirados na neve, após um deslize. E seus equipamentos ainda ao lado, sepultados pelas intempéries hostis. Alguns ainda estão vivos e pedem por ajuda. Mas não podemos ajudá-los.
– Não entendi. Confesso que alguma coisa ou outra dos seus dilemas fazia sentido, mas não vejo nenhuma lógica neste. – sacudo a cabeça em sinal de descontentamento. – Não sou bem um homem da razão. Dê-me um motivo para eu te matar numa situação hipotética destas. – finco as picaretas na grande parede branca-neve de gelo e neve. Pauso um pouco para descanso. Não sei por que ainda o desafio a responder a própria pergunta, isso é simplesmente otário.
– Por que não me matar? – acopla as picaretas na parede-solo.
Travis tem incluído em sua filosofia a teoria da questão inversa, denominado segundo ele. Se uma pergunta não faz sentido ou é retórica, aplique um “não” ou algum outro tipo de negação e oposição à questão. A maioria dos casos é de afirmação para negação, mas nada impede que o inverso ocorra. E agora caí em uma de suas armadilhas: Por que não matá-lo?
– Porque não queria ver você morto. Eu gosto de você, sabe? – aguardo com receio a resposta. Não dei uma boa resposta.
Tem um corpo fincado pelos ombros ao nosso lado. Uma tábua de passar roupa. Que crueldade.
– Não cara, assim você mostra que não sente nada com imensa superficialidade. É algo mais profundo, como um lago profundo no fundo do mundo. – Travis segura firmemente nas picaretas coladas na montanha. – Olhe só que engenhoso: Caso 1: se você matar meu eu-zumbi, ou você me odeia muito e não quer me ver ou ser mordido, ou você me ama muito e não quer me ver neste estado e ser mordido. Caso 2: se você não me mata, é porque não significo nada ou porque não quer ser mordido. Então corre para as montanhas, no sentido figurado, lógico. – ofega.
– Então, você me odeia ou me ama? – pergunto acompanhando a sua fadiga.
– Eu te amo, cara. Não no sentido gay, credo. – os olhos dizem a verdade, embora seus óculos estejam meio embaçados. – Sabia que a casquinha de sorvete foi inventada em Nova Iorque?
– Não fale em sorvete agora, tá me dando frio.
– Chega de balela, vamos escalar esta cadela. – vira-se para frente.
Por que escalar a montanha mais alta, famosa e uma das mais perigosas? Não responda. Agora, por que não escalar? Travis é foda mesmo. Por que Everest não é a mais perigosa, se é a maior? Porque K2 é mais inclinada, imprevisível e mortal. Por que Everest é a mais perigosa?... Porque a teoria da questão inversa não é infalível. Eu não sou um homem da razão, me perdoem.
– Porra, que frio do Diabo. Não sei como estou surpreso, o frio é quase sempre o mesmo nas outras. Vicío idiota. – comenta consigo. – É a mesma coisa dos finais de ano: “Como o ano passou rápido!”. É um vício de surpresa irreal, o ano não passou rápido. Se for analisar...
– Cara, cagada...
– Não isso, se for analisar bem...
– Cara! Olhe para cá! – grito.
– Não grite! Você sabe que o esforço... – os óculos estão mais embaçados, mas consigo ver o contorno dos seus globos oculares quase saltando de órbita, que miram minha pessoa. – Caralho, cara! Que cagada!
Quebrei as pernas.
– Como fez isso?!
– Foi assim: Oba, vou escalar... Creck Crock! – arfo. – Não grite, caralho! Você sabe que o esforço...
– Foda-se o esforço! Olhe as suas pernas, cara! – aponta para elas, como se eu não soubesse o que está acontecendo com meu próprio corpo deformado. – Dói pra cacete?
Digo que não, não está doendo o quanto eu esperava. Deve ser o frio que amorteceu os membros. Dá para fazer uma cirurgia nesse lugar. Eu esperava por uma cena de choro agudo e excruciante. Não é uma dor do caralho, e sim uma dorzinha do caralho.
– Travis, eu te amo.
– Eu também, Simon – aproxima-se cautelosamente com derrapadas suaves. –, mas agora precisamos dar um jeito nestas...
– No sentido gay, Travis... Eu te amo. – falo com as mãos nos membros estourados. – Travis, me mate.
– Porra, cara! – os olhos quase caem em queda livre. – Desculpe-me, não posso te matar, eu gosto de você... No sentido hetero.
Rio.
– Cara, sou um zumbi. Não tenho para onde ir, estou deformado, praticamente morto, parecendo um retardado e uma ameaça a sua vida. Só não vou te morder, mesmo querendo. – digo, no sentido gay, não no zumbi. Gay demais até para mim. Acho que falei merda. – Mate-me, não quero ser um fardo e acabar matando a nós dois. – olho para minhas pernas e depois para seus óculos praticamente brancos. – Conhece o esforço, né?
Travis reluta por uns instantes que parecem mais gelados do que são, ou apenas são deste jeito mesmo. Pensa com os olhos. Olho para ele, penso com o coração. Momento gay demais até para mim. Depois dessa série de cagadas, quero morrer.
– Tá, eu te mato... – respira profundamente. – Morro junto.
Sinto que ele sente que eu sinto tremenda confusão na salada da discreta agonia e surpresa.
– Sempre quis pular de 4.500 caralhos de metros. – brinca, olhando para o horizonte que não é mais nada comparado ao que costumávamos ver lá embaixo. Não é nada. – Vou fazer isto porque te amo, cara. Seria injusto matá-lo e jogar o seu amor no lixo. Só não te beijo porque sou macho e nossos lábios iriam grudar. – chora e ri.
– Não, cara! Não precisa se matar! Realize o seu sonho! – com esforço cuspo as palavras em seco.
– Meu sonho? Ter uma amizade verdadeira e sólida. Pelo menos mais sólida que esta neve. – joga as luvas para o lado, que deslizam suavemente rumo à base do monstro gélido. Pega um punhado de neve com as mãos expostas. – Então, por que não me matar? – aperta tanto a mão que o branco radiante escapa pelos vãos dos dedos. – Sempre quis sentir o branco daqui. – os óculos se embaçam muito, umedecem, quando conversa consigo. Sua mão está avermelhada. – Essa droga tá enchendo o saco. – riso, choro, branco limpo disforme e óculos voando.
Picareta levanta, ao som do vento glacial. Silêncio do barulho levanta. Picareta deita, ao som de meus batimentos cardíacos.
Se eu estivesse vivo, não haveria amor. Não haveria lágrimas de gelo, não haveria história nem orgulho nem nada.
Se Travis estivesse vivo, não haveria esforço, nem haveria sangue nem picaretadas dolorosamente confortantes. Queda livre seria apenas sonho. Nossa história seria sonho real, passaria de boca em boca até a última geração muda. O hálito quente da conversa seria um orgulho.
O Everest nunca assistiu a tamanho espetáculo de compaixão, e coração frio ganhou um sentido novo.
Já que picareta e coragem existem, somos zumbis... Por que não?
E você, preferia estar morto ou vivo?
Morto-vivo. Por que não?