UM FUSCA NO ANALISTA

- Eu sou um Fusca. Amarelo. 1971. Sou bem conservado. Aliás, o cara que deixar um fusca virar lixo não vale nada. Todas as minhas peças e partes podem ser trocadas e qualquer mecânico iniciante consegue consertar-me e conservar-me. Meus pneus são todos de marca famosa. Meu interior está muito bem, obrigado. Tenho o painel em mogno, bancos de couro sintético. Na alavanca de marcha, um escudo do Corinthians, presente de um irmão do meu ex-dono. Meu câmbio é de quatro marchas para frente, como todo fusca antigo (esse metido do Beetle é muito moderninho...), mas faço meus 115 km/h, dependendo do motorista. Meu motor é uma explosão só: 1500. Sou conhecido, também, por fuscão. O meu primo, o fusquinha, é o de 1300. Ele tem a economia de combustível. Eu tenho a força. Minhas lanternas eram médias, mas meu antigo dono colocou lanternas “fafá”. Já falaram que eu era o jipe da cidade. Sou experiente. Tenho muita história para contar. Muita mesmo. Mas, uma delas, muito triste, foi o que me trouxe aqui.

- Pode falar.

- Eu era feliz.

- Era???

- Sim, era. Meu dono era um rapaz de 32 anos de idade. Branco, bonito, gordinho. Um cara legal. Cuidava muito bem de mim. Sou o que sou, hoje, por causa dele.

- Você tem ligações afetivas com ele, não é?

- Sim, claro. Éramos quase um só, uma união perfeita entre um homem e um veículo. Férias, trabalho, pileques, amores, transas. Estando ele, lá estava eu também.

- E...

- E tudo começou a ficar mal quando ele se apaixonou por Valquíria.

- Você ainda não falou o nome de seu ex-dono...

- Dói em mim lembrar dele.

- Por quê?

- Sensação de abandono. Mário era o seu nome. E quando ele se apaixonou por Valquíria, tudo começou a mudar. Ele não era mais o mesmo. Cuidava muito mais dela do que de mim. Não que tivesse me esquecido. Mas, mesmo quando ele mandava me lavar e polir era pensando nela, não em mim. Em vez de sermos uma dupla, agora ele só pensava nela. Bombons, flores, prendinhas, presentinhos em lacinhos de fita. Champagnes. Eu, seu fiel amigo, só valia a partir do momento que podia servi-la.

- Na sua opinião, qual a função de um carro na vida de um humano?

- Um carro? Transportar pessoas ou objetos. Facilitar a vida encurtando distâncias, dando conforto. Mas eu era mais que um carro na vida do Mário. Eu o conhecia como conheço meu motor. Cada atitude dele, uma arrancada, uma marcha mal passada, um sinal avançado em hora errada, um freio, uma cara feia no retrovisor. Por isto que me sinto péssimo hoje em dia.

- E seu novo dono?

- Dona. Laura. É uma moça legal, uma vendedora emergente no ramo de confecções. É gente fina, mas...

- Mas...???

- Falta-lhe algo para me completar. Ela não é tão dada a mim como ele o era. Sequer leva o namorado para passear comigo. Eles preferem ir no carro dele, mais novo, luxuoso, veloz.

- Você se sente em segundo plano, então...

- Lógico. E não é para menos. Quem teve Mário como dono não pode viver a vida que vivo. Até o aparelho de cd que tenho, super potente, foi ele quem instalou em mim.

- E por que ele o vendeu?

- A história é longa. Começa com a Valquíria... Ele se apaixonou por ela como nunca o tinha antes. Devo reconhecer que ela era especial. Um brinco de mulher. Caprichosa, elegante, mandona. Ele se babava todinho por ela...

- E você de ciúmes dela, né???

- Sim, sim, sim. Eu sei que ela tinha importância própria e eu tinha a minha. Mas, ele esqueceu de mim. Tudo que eles viveram eu vivi junto. Cinemas, teatros, festas, viagens, chuvas, poeira, praia, sítios, feiras, shopping. Dos motéis eu lembro que foram treze vezes. As outras vezes, eu que era o motel. Com as outras namoradas eu nem me preocupava com o sêmen que caía no banco e no piso. Eu gozava junto com ele. Mas, com Valquíria era diferente. Eu deixei de fazer parte do romance. Sentia nojo de todas as preliminares ou principais que eles faziam dentro de mim.

- Por que você tem tanta raiva dela? O que ela lhe fez?

- Certo dia, ela disse ao meu dono que ele precisava de um carro mais novinho. Eu já havia dado o que podia. Que prepotência. Mulheres não entendem nada de carros, muito menos de mim. O mecânico dizia que eu iria ver o século XXII se bem cuidado!

- E isto te doeu muito?

- Nem precisa perguntar. É claro que sim. Nós, carros, também temos sentimentos. Ou você acha que o que aquele presidente disse dos aposentados não doeu em vocês, humanos. Ninguém quer ser inválido. Ninguém é inválido.

- E depois disto?

- Percebi que ele mudou. Começou a não mais conversar comigo como antes. Mas, como estava de grana curta, não podia me trocar logo. Logo eu, que tanto o fiz bem, passei a ser um segundo plano. O primeiro era agradar Valquíria.

- Você não acha isto normal, para um humano?

- Sim, reconheço que sim. Por isto estou aqui, neste divã. Meus trinta e um anos começam a pesar sobre minhas rodas.

- Continue.

- Eu conhecia o caminho da casa dela como ninguém. Se me ligasse e dissesse “Vá à casa de Valquíria” eu chegaria lá sem problema nenhum. Pararia em frente da casa amarela. Esperaria que ela se aprontasse, abrisse a porta, sorrisse. Ele, todo prosa, já estaria de pé, em frente ao portão, para beija-la e abrir-me a porta, como um cavalheiro, esperando-a entrar. Rua das Flores, número 53. Defronte à sua casa, uma sorveteria. Quase sempre, jovens, crianças e adultos estavam lá, a degustar algum sorvete de goiaba ou kiwi. Domingo a domingo, impreterivelmente às sete da noite. Levei-os às muitas sessões de cinema. Foram 11 meses de felicidade total dos dois...

- O que mudou? Por quê mudou?

- Ela. Eu presenciei tudo. Foi numa sexta à noite. Neste dia, ela vestia uma saía justa preta, uma blusa creme, um sapatinho preto, com solado gasto nos calcanhares. Eu e ele paramos em frente à sua casa, rua das Flores, 53. A natureza prenunciava o fim. A lua se escondeu, chuviscava, fazia frio. Havia um convite natural para a cama, os cobertores, o travesseiro e as lágrimas.O dia tinha sido triste, antecedendo ao final. Ela entrou no carro, deu um sorriso sem graça, um “boa noite”. Estava estranha, como ficam estranhos todos os que vão acabar um relacionamento. Aliás, há muito que vinha estranha. O fato dela não beijar Mário intrigou e esclareceu tudo para ele e para mim. “Mário: preciso te falar algo... – Já sei o que é, não precisa falar. – Mas preciso. Olha, é que eu... – Pare! Disse Mário. Já saquei tudo. Você não me quer mais, você vai acabar o nosso relacionamento. Não precisa dizer. – Mário, não me interprete mal, é que... – Pare, já disse! Sei que você não me quer mais. Sendo assim, não quero explicações suas. Quero te imaginar uma víbora, um ser maligno. Assim, posso te matar dentro de mim e aliviar minha dor. Você não sente mais nada por mim, mas eu a amo. Podes ficar tranqüila, não vou procurar você nunca. Pode ter certeza. Agora, desça do carro. – Mas, Mário, você nem me deixou falar! – Nem quero. Vamos, suma daqui.”

- E o que você achou disto tudo?

- Sofri com ele. Afinal, eu não queria o mal dela, queria que ele voltasse a ser o que era antes comigo. Nenhuma coisa nem outra. Nem eu, nem ela. Depois eu descobri que ela não gostava mais dele para namorar, mas sim, como amigo. Ele era um cara legal, mas, nem sempre os caras legais são pra se namorar. Existem as amizades também. Contudo, enquanto ela queria um amigo, ele a via como a mulher da vida dele, o grande amor. Aí, você já sabe como é.

- E depois disto?

- Bom, a deixamos em casa. A lua continuava escondida. Chuviscava bastante. Pela última vez, eu faria aquele percurso. Olharia pela última vez para a sorveteria. Subi por uma rua, contornei o giradouro, entrei pela mão única, parei em frente ao número 53. Ela sorriu mais uma vez. Um sorriso de despedida. Ele olhava para frente, para o horizonte enegrecido do seu futuro solitário. Ela deu boa noite, abriu a porta, levantou o vidro para brisas lateral direito, fechou-me a porta. Com o motor ligado, ele engatou a primeira marcha e saiu. Ela nos seguiu com os olhos até que viramos a rua. “Adeus”, deve ter pensado. A 40 km/h, pegamos a principal. No som, um cd de Chico Buarque tocava “A ostra e o vento”. Chuva, noite, nuvem, lua escondida, faróis acesos. Meus limpadores de pára-brisas estavam acionados. Fomos direto para casa. Paramos defronte à garagem. Ele deixou-me ligado, saiu, abriu a porta da garagem. Voltou para mim, colocou-me para dentro, fechou a garagem. Dentro da garagem, um cenário fúnebre, dada a escuridão da lâmpada de 25 velas. Cumpriu um ritual antigo. Flanela à mão, limpou cada gotícula de chuva (ou seriam lágrimas?) de minha lataria. Fechou-me os vidros, limpou-me os tapetes. Tudo pronto comigo, apagou a luz, entrou em casa e, durante o sábado e o domingo não saiu de dentro do quarto a não ser para ir ao banheiro. Eu acho que escutei seu choro. Senti suas lágrimas caindo ao chão. Mesmo com o sol do final de semana mudando a paisagem, o cinza reinava em nossa casa. Creio eu que a chuva da sexta-feira era de lágrimas mesmo... Fiquei louco para entrar em seu quarto e convida-lo para um “happy hour”, um cinema talvez. Mas, nem pude entrar, nem ele veio até mim. Seu quarto era pequeno, três metros quadrados e meio. Um aparelho de tv, um radinho, um abajur. Não havia janelas em seu quarto, o que lhe contribuiu para um final de semanas feito uma longa noite de 58 horas. Somente saiu na segunda-feira. Barba por fazer, óculos escuros escondendo as olheiras de sono e lágrimas. Mesmo com a longa noite, não conseguiu dormir. (O que será que ele pensou durante todo este tempo?) Poucos dentes à mostra. O pão e o leite que ele não pegou na sexta e no sábado ainda estavam na varanda, já meio estragados. Tirou-me da garagem. Caminhamos até a livraria. Lá, ele comprou um cartão em branco, trouxe até mim, pegou uma caneta e escreveu as seguintes palavras;

“Valquíria:

Fui grosseiro contigo. Perdoe-me a imbecilidade. Eu te amo. Se num destes dias da tua vida, mesmo que seja no finzinho dela, quiseres voltar pra mim, eu estarei esperando por ti. Não se sinta constrangida em falar-me. Estarei de braços, coração e sorriso abertos.

Mário”

Fomos até os correios, onde ele colocou o cartão com o destino conhecido da Rua das Flores, 53. Depois disto, veio o trágico: por faltar ao emprego na segunda-feira pela manhã, foi demitido, pois, por este motivo, a empresa deixou de fechar um grande negócio pelo qual era responsável. Era a segunda vez que faltava por causa dela (na outra, dormiram num motel). Demissão sumária, imediata, sem piedade alguma. Até creio que ele já estava na lista negra, somente esperando um motivo. Ficou maluco. Sem amor, sem emprego. Será que ele havia entrado o ano com o pé esquerdo? Tive medo dele lembrar do calibre 38 que guardava dentro do cofre.

- E daí?

- Daí que ele, durante aquelas semanas seguintes, ficou na maré mais baixa de sua vida. Não ia a local nenhum, a não ser para procurar emprego ou comprar comida. Somente fazia a barba para dar-lhe uma melhor aparência. A casa estava com a limpeza atrasada umas quatro semanas. Roupas pelo chão, dentro do armário de copos, em cima da mesa. Tudo lembrava um fracassado em um mundo caótico. Até que, um dia, foi procurar emprego e conseguiu: representante de um produto de limpeza dentro do Estado. Viveria viajando. Isto seria bom para faze-lo esquecer de Valquíria. E seria bom pra mim, também. Eu voltaria a ser o seu companheiro. Mas, o pior aconteceu... E isto foi péssimo...

- Não chore, amigo fusca, não chore. Coloque tudo pra fora, conte-me o restante. Vai ser bom para você desabafar.

- Com o novo emprego, exigiram um carro novo, potente, veloz. Ele pegou o dinheiro da rescisão do contrato anterior, com fgts e tudo o mais, e deu entrada num carro novo, do ano. E, para ajudar a formar o montante da entrada, ele me vendeu numa agência de veículos... Foi o meu inferno. Ele chegou de mansinho, retirou todos os pertences que havia deixado em mim, ferramentas, a base da marcha, chaveiros, crucifixo, terço, tudo que era seu. Levou-me ao lava carros, mandou dar uma geral, com cera e tudo. Pagou quinze reais pelo serviço. Entrou em mim com cara de última vez. Vagarosamente, guiou-me pela vizinhança, dirigiu-se ao centro de vendas de veículos. Leiloou-me em um leilão cruel: cada um que desce menos por mim. Finalmente, o dono de uma agência ofereceu-lhe mil e quinhentos reais. Ele contestou, pediu duzentos a mais, mas ficou mesmo na proposta do comerciante. Recebeu o dinheiro, entregou as chaves, olhou para mim por uns instantes. Lágrimas desciam dos seus olhos. Triste fim de uma amizade. Deu uns passos adiante, lentos, sem força nem vontade. Parou na porta da agência, voltou-se para mim, olhou-me e se foi. Eu quis buzinar, mas esqueci que ele não estava mais dentro de mim, para acionar o sistema. Quis correr ao seu encontro, mas ele não estava mais a me guiar. Minhas entranhas, frias, silenciosas, paradas, sofreram e choraram sem que ninguém notasse. Passei dias e dias sem que nenhum ser vivente olhasse para mim. Eu era o carro mais velho da agência. Hoje em dia, ninguém mais sai de casa para comprar um fusca 71. Senti-me um leproso, um lazarento, um prisioneiro abandonado, excluído, infeliz. Um mês e meio depois é que fui vendido para a Laura. E nunca mais vivi feliz.

- Você lembra muito do Mário?

- Todas as noites, após a meia noite, saio pelas ruas da cidade, indo do meu bairro até o seu bairro. Eu passo em frente à minha antiga casa. Sei que ele dorme, mas reconhece meu motor, quando passo. Sei que ele lembra de mim. Sei que ele já me viu, umas vezes. E sei que, numa destas vezes, ele chorou. Lembrou de mim. Lembrou de tudo. Virou o rosto, fechou os olhos. Engoliu seco. Era um amor partido. Nem eu, nem ela. Mas, principalmente, eu. Eu nunca o abandonei. Minha vontade é fugir de casa. Sair de minha garagem e ir ao seu encontro. Buzinar em frente ao meu antigo lar, piscar minhas lâmpadas. Mas, o tempo mudou, o tempo passou. Não somos mais os mesmos. Eu mudei, mudou ele, mudou o tempo, mudaram os sentimentos. Ouvi dizer que ele foi promovido a representante regional, trabalhando em cinco estados. Está ganhando uma nota preta. Bem que ele poderia me comprar e me guardar no seu quintal...

- Bom, amigo fusca, seu tempo acabou. Semana que vem, estou esperando você. Como tarefa para esta semana, você vai prestar atenção ao que sua nova dona tem de bom e faz de bom para você. Anote tudo para me falar, ok!

- Sim, anotarei. Obrigado, doutor. Posso sair pelos fundos? Não quero que ninguém me veja aqui, nesta sala de analista. Vão pensar que sou doido ou efeminado...

- Até mais. Você é importante para sua nova dona. Lembre disto.

- Tentarei lembrar. Até mais...

A porta de trás se abre, o fusca vai embora...

O doutor abre a porta do consultório:

- Próximo paciente!

- Boa tarde, doutor.

- Boa tarde. Seu nome?

- Mário.

- Pois não, Mário. Qual o seu problema?

- Um fusca. Um fusca que tive no passado...