367-A VINGANÇA DE PERPÉTUA

Era uma mulher muito despachada, conhecida em toda a cidade pelo ofício de parteira, disposta a atender a quem estivesse precisando de sua ajuda, a qualquer hora do dia ou da noite. Era literalmente uma grande mulher: mulata alta, fartos seios, cintura fina,, ancas largas e traseiro avolumado> Dona Perpétua gozava de respeito de toda a cidade e até mesmo das mulheres da zona.

Casada há mais de vinte anos com Felipe Boiadeiro, que a tirara do meretrício para viverem juntos, Dona Perpétua, sem esquecer as agruras pelas quais passara, visita periodicamente as ex-colegas e sempre amigas, a fim de levar-lhes remédios e atendê-las na solução de alguns problemas de saúde.

Numa das visitas à Pensão da Polaca, estava conversando com uma das mulheres, de costas para o corredor principal. Ganimedes, freqüentador da zona, muito debochado, fingindo não conhecê-la, achega-se por trás e dá o maior agarro em Dona Perpétua, que, surpreendida, dá-lhe um tranco. As outras mulheres gritam:

— Pára com isso, Ganimedes, não tá vendo que é a mulher do Felipe Boiadeiro?

Ganimedes, querendo consertar a situação, sai-se com esta:

— Pois é a terceira mulher do Felipe que conheço na zona.

O constrangimento aumenta. Dona Perpétua, agora, além de injuriada pelo agarro do Ganimedes, quer saber da história do marido. Em vão as putas negam que ele freqüente a zona e, muito menos, que tenha mantido mulheres ali.

Do incidente ficou aquela desconfiança, roendo a mente e disparando a imaginação de Perpétua. Ela não se arrepende de ter deixado a zona para viver com Felipe. Não se aborrece nem mesmo em lembrar-se de que foi ela quem garantiu a situação do marido, quando ele perdeu fazenda e gado, na crise do zebu, na década de 1940. Também não se importa de ser ela a responsável pela manutenção da casa, já que o marido não tem trabalho fixo.

Mas não pode perdoar a traição. Sim, porque não ficou nada satisfeita com as explicações das ex-colegas.

Passa a vigiar o marido. E descobre que o malandro a engana, sim. O cafajeste, que não tem ofício nem emprego, faz da ociosidade sua profissão. E como a ociosidade é a mãe de todos os vícios, eis o homem dedicando maior parte do seu tempo às delícias de encontros amorosos à beira do córrego da Paca. No local conhecido por Poço Redondo, as águas claras do ribeiro formam uma lagoa bordejada de arvoredo e touceiras de bambus, um lugar propício aos encontros de amantes e namorados.

Felipe, o don-juan de São Roque da Serra, é esperto. Só leva para a orla do Redondo as conquistas fora do circuito da zona. Por isso as mulheres do meretrício não sabem (ou fingem não saber) de suas estripulias.

Feita a descoberta, a expedita mulher não faz estardalhaço. Continua fingindo que nada sabe. Porém, da vigília constante, vem um plano de vingança. Em certa tarde quente, quando todos na cidade se dedicam aos quefazeres diários, Felipe e sua nova conquista se dirigem, disfarçadamente, ao ponto de encontro clandestino. De longe, Perpétua os acompanha, também cautelosa, escondendo-se de todos.

Por entre as árvores, observa o casal. Mantém a cabeça fria, não pensa em tomar nenhuma atitude estabanada. O casal, entre achegos e abraços, despe-se e entra na lagoa. Brincam e riem, gozando da frescura da água. As roupas estão sobre pedras, debaixo das árvores. Distraídos, não vêem quando a traída rouba as roupas e desaparece.

Quando os amantes voltam à margem...cadê as roupas?

— Elas estavam aqui, sobre as pedras. — Exclama Felipe.

— Desgraça, você deixou alguém roubar nossas roupas. – A mulher, desesperada, parte para a briga verbal.

— Que culpa tenho? Como é que eu ia adivinhar?

O desespero é total. Discutem em vozes alteradas e são ouvidos por Armindo Braga, que passa do outro lado do Redondo, campeando uma rês extraviada.

De longe, pergunta:

— Hei, gente? Que briga é essa?

Os dois se escondem detrás das pedras. Felipe expõe a cabeça e responde:

— Num é briga, não. A gente tava nadando aqui e algum engraçadinho roubou nossas roupas.

Aos gritos, Felipe e Armindo se entendem. Armindo, que mora em sítio próximo, propõe arrumar roupas para o casal...por algum dinheiro, é claro.

— Pago, sim, mas pelo amor de Deus, me arranja pelo menos um vestido para ela, calça e camisa pra mim.

Negócio combinado, Armindo vai em busca de roupas. Já está escurecendo quando volta com o que encontra em sua casa: roupas de gente da roça, que não agradam a Felipe nem à companheira.

— Que merda! — Ela exclama. — Olha só que coisa mais esquisita!

— Deve dar graças a Deus. — Ele procura amenizar a situação. — Vamos embora assim mesmo.

Vestidos como jecas, os dois voltam à cidade. Vão separados, cada qual seguindo um rumo diferente, esgueirando-se por vielas e à sombra do casario. Já é quase noite, o que facilita o retorno.

Ao chegar em casa, tenta entrar sem ser percebido. Ainda no portão, é interceptado por Perpétua, que, com um olhar de desprezo e deboche, joga sobre o marido as roupas surrupiadas, as botinas e o chapéu:

— Taí, Felipe, suas roupas e botinas. Junta tudo e vai viver com quem quiser, nos quintos dos infernos.

ANTÔNIO GOBBO =

BELO HORIZONTE, 20/OUTUBRO/2005

CONTO # 367 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/08/2014
Reeditado em 10/08/2014
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