Sentimentos
Pássaros piando e suas asas cantando. Um piano sendo tocado pelo sentimento de um homem idoso ou pela técnica de uma criança prodígio. Uma rocha rolando em um declive, e por fim imergindo em água clara. Ou mesmo um peixe saindo dessa mesma água através de um anzol, uma linha e uma vara de pescar. Uma salva de palmas. Buzinas de um tráfego congestionado e caótico. Meu amor, minha cúmplice, me pergunta:
– Você está com medo?
– Não muito. – respondo.
Esforço-me o máximo para manter a firmeza em minha voz e, de maneira alguma, encaro ela nos olhos. Eu sei o poder que um olhar tem de revelar as vontades trancafiadas no âmago das pessoas. As palavras são armas poderosas, mas os olhos são armas mais poderosas ainda. Não quero que ela se sinta desamparada. Eu faço o máximo que posso para mantê-la melhor do que eu realmente me sinto agora. Ela se aperta contra o meu corpo.
Eu vejo coisas, eu vejo coisas caindo, eu vejo o ambiente. Eu me lembro de todas as coisas ao mesmo tempo, de todos os nossos momentos. Eu não consigo me imaginar sozinho novamente, nem me lembro das coisas que eu costumava fazer sozinho. Estamos sentados contra um canto formado pelo encontro de duas paredes, a minha mais negra que a dela. Minha outra metade, meu pilar, me diz:
– Eu queria fazer tanta coisa na sua companhia. – ela diz, em voz baixa, contra o meu peito. – Eu não queria me separar de você. Eu ainda não consigo aceitar a ideia de que você irá partir de uma vez por todas. Esta ideia me parte toda, em vários pedacinhos.
– Você tem que aceitar. Não há sentido algum lutar contra isso. Seja forte. – acaricio o seu cabelo, as suas orelhas, a sua nuca, e ela me abraça mais forte no sonho de nos fundir em um ente.
As sensações que tenho nas palmas das mãos trazem à tona várias lembranças quentes de situações envolventes. Os seus braços me envolvendo esquentam o meu corpo. Minha amiga, minha companheira para todas as situações, ela chora. Suas lágrimas percorrem o rosto entristecido dela e molham a minha mão que massageava a sua bochecha avermelhada. Eu passo os meus dedos debaixo de seus olhos, cautelosa e carinhosamente, enxugando a sua dor. Suas lágrimas se espalham na minha pele, e eu as sinto fisicamente e, com mais intensidade, naquilo que ainda bate no meu peito. Ela sua, eu suo.
Ergo a sua cabeça, com jeito, para encontrar as suas pupilas. Digo com os olhos que tudo acabará bem, mesmo acabando mal. Minha parceira devolve o olhar e pergunta:
– Por que tudo tem que ser assim? Por que não podemos mais viver juntos? Isso é o fim para nós dois?
– Por favor, não pense nisso. Você sabia que algum dia esse dia iria chegar. Só aconteceu antes do previsto.
Ela suspira rindo e soluçando.
– A vida é imprevisível. Encontramo-nos de maneira imprevista e nos separaremos de maneira imprevista. – diz, em voz trêmula. – Eu sempre imaginei que esse dia iria chegar, mas, ao mesmo tempo, nunca pensei que um dia chegaria. – abraça-me mais forte. – Eu quero ficar o mais próximo de você, enquanto posso.
– Tudo bem, está tudo bem. Seja forte. Dê-me um abraço forte, se isso te faz se sentir melhor. – digo, acariciando o seu cabelo.
O perfume do seu xampu caminha até as minhas narinas.
Memórias, somos todos feitos de memórias. Vivemos para fazer mais memórias. Elas machucam, elas te fazem melhor. Elas te trazem saudades, elas te trazem conforto. No nosso primeiro encontro, eu me lembro do cheiro da comida daquele restaurante. Eu me lembro da fragrância que ela usou no pescoço, enquanto estávamos bem próximos um do outro, naquela noite. O odor do seu corpo pela manhã, pela tarde, e na nossa cama, eu me lembro de tudo isto.
Sinto-me sufocado. Com calor. Tento me fazer de forte, mas uma lágrima me escapa e atinge o topo da cabeça da minha fortaleza, do meu ídolo, de onde todos os fios longos de cabelo saem, e isso faz com que ela se renda completamente ao choro. Seu sofrimento me abala, me rasga. Seu lamento áspero entra em meus ouvidos e se acumula dentro da minha cabeça, até que chega a um ponto em que seu som faz uma incisão em meu coração e sucumbo aos prantos. Choro alto. Puxo minha vida, minha garota, contra mim, e ela suplica:
– Não vá! Não vá! Fique comigo para sempre! – ela tenta falar mais uma coisa, mas sua voz falha.
Eu tento falar alguma coisa, mas minha voz entala e não sai. As chamas intensas se aproximam de nós, as coisas caem, as coisas incendeiam. A energia nos atinge em forma de desesperança e agonia. Eu me aproximo da sua boca e a beijo calorosamente. Meu coração inflama. Todo o resto ao redor de nós desaparece, gradativamente. Tudo se resume à situação atual entre nós. Todos os nossos cinco sentidos sentem apenas o que transmitimos um ao outro. Após isto, não haverá mais memórias a serem lembradas e nem memórias a serem construídas. Após este momento, deixaremos de existir. Seremos envolvidos pelo mesmo fogo, e nele nos tornaremos um.
E, de repente, a serenidade me invade por completo, de uma vez por todas. Eu digo à minha vida, à minha amada, à minha adorada, ao meu tudo:
– Eu te amo muito, mais do que tudo nessa vida.
– Eu também te amo muito.
– Chegou a hora de partirmos.
– Sim. Estamos juntos nessa.
E ela me beija novamente. Desta vez, o beijo é mais longo e revira todo o meu interior de uma vez por todas.
E desta vez, consigo sentir as chamas queimando as minhas pernas, me sufocando, me cegando, me ensurdecendo e transportando fuligem à minha boca.