Lição de casa
Ela tinha 15, eu 13; nunca tínhamos nos falado: Eu Tímido, ela, líder natural; estávamos na mesma classe; não que ela fosse repetente, eu quem estava adiantado, sou das chuvas de Novembro, ela, das águas de Março, o que nos dava, a maior parte do ano, dois anos de diferença.
Tímido e, como os meus colegas carinhosamente me chamavam: CDF (Cabeça de Ferro) – já que eu não conseguia falar, compensava sendo um gênio; nunca fui muito bonito, não que seja um monstro horrendo, mas digamos que eu jamais seria o galã da novela das oito que, por algum motivo, nunca começa às oito. Resumindo: era tímido, CDF, e, o mais importante, não era um galã de novela, e detestava tudo isso, por causa dela.
Antes, minha vida era ótima, não falava com ninguém, e ninguém falava comigo – ótimo! – a única palavra que saia da mina boca, quando o professor insistia em ignorar minha mão no ar, era:
- Presente.
Detestava o jeito que seu cabelo mexia quando andava, o cheiro de sândalo, seus olhos azul-esverdeados, sua voz suave e viva; abominava ver que conforme respirava seu peito se movia suavemente; que quando ficava apreensiva mordia o canto da boca; odiava-a por intero, com todas as minhas forças, odiava-a, cada dia com maior intensidade.
Um dia, a professora de português teve uma idéia brilhante: faríamos um teatro! Claro que a priori eu recusei, mas ao ser informado que ficaria com zero, meu lado CDF venceu meu lado Tímido.
A peça: Romeu e Julieta; logicamente queria com toda minha alma ser um dos figurantes, de preferência um que morresse no começo da encenação, mas a professora, muito amável, explicou que não seria a peça original, pois não haveria tempo, mas cada grupo encenaria uma parte da peça; ou seja, teria de falar.
Isso, porém, não foi o pior – não, não poderia ser fácil; a professora escolheria os Romeus e as Julietas. Eu e a Amanda (odiava até mesmo o nome dela) , formaríamos um par; implorei para professora, disse-lhe que provavelmente desmaiaria na frente da sala, que nunca falara em público, que isso era absurdo, etc., mas ela não deu ouvidos e disse-me:
- Você vai se sair bem. Acredite em mim, conheci muita gente tímida na vida, que se curou fazendo teatro.
-Não quero ser curado, só não quero ficar com zero! Respondi
-Você vai fazer o Romeu na cena final. Sabe qual é? – Foi a resposta que me deu.
-Sei: Ele toma um veneno pensando que ela morreu de verdade; ela acorda vê o frasco, e... – Foi aí que notei o que me esperava; mais que falar em público, teria que beijar em público.
-E ela o beija e se apunhala. A professora terminou a sentença.
-Professora...
-Sem discussão!
Como eu não queria parecer muito idiota, resolvi que teria que convencer-la a ensaiar, mesmo que a odiasse, eu odiava mais a idéia de tirar um zero.
-Amanda, a gente tem que ensaiar! Quando você quer ensaiar?
-Hoje! Você vem comigo para minha casa. Sorriu e foi falar com umas amigas, ficaram de risinhos e ela sempre olhando para mim.
Por desventura, as aulas voaram, como se fossem foguetes, e, ao meio dia e vinte minutos, eu saí, vi Amanda e disse:
-Amanda, me espera! Eu tenho que ligar em casa, se não minha mãe vai ficar preocupada...
-Liga de casa!
Caminhamos uns vinte minutos, a cada passo a angustia crescia em meu peito, me esquecera completamente do meu ódio, estava tão completamente preocupado em pensar o que ela diria ao descobrir que eu jamais beijara alguém, tinha arrepios só de imaginar ela contando às amigas o meu vexame.
-É aqui, disse ela parando em frente de um sobrado cor-de-rosa.
-Você não mora longe de minha casa – disse eu, ainda mais apavorado agora que sabia que morávamos a três quadras um do outro.
-Eu sei, retrucou-me corando de leve.
Eu não entendi o porquê dela ter corado, mas fingi que não notara e fiz muito bem, após esse breve dialogo, ela tocou a campainha e aguardou; não obteve resposta; tocou novamente: nada.
-Meus pais saíram.
-Ah, que coisa, a gente ensaia outro dia então – respondi já começando a ir embora, mas ela me deteve e disse:
-Não seja bobo, eu tenho a chave.
-Então, por que tocou a campainha?
-Para ver se eles estavam aqui.
Fiquei sem entender, mas ela abriu o portão e me puxou para dentro.
-Vamos anda logo vamos lá na sala ensaiar.
Depois que liguei para casa começamos o ensaio, no inicio meramente líamos as falas, nem chegávamos a encená-las; passada mais de uma hora; já decoráramos as falas e dávamos início às representações: Na primeira vez não nos beijamos, tampouco o fizemos da terceira, mas na quarta tentativa foi inevitável; como eu estivesse de olhos fechados fingindo-me de morto, só pude sentir seu o rosto aproximando-se do meu, cada segundo mais próximo, já sentia o hálito fresco, agora não faltava muito, então aconteceu, o meu glorioso primeiro-beijo: não fui tão mal como imaginara que seria, até por que ela meramente encostou os lábios nos meus, mas já era alguma coisa; ela se levantou e disse:
-O que acha? Já está bom?
Agora era minha vez de corar, mas eu corara violentamente, sentia meu corpo todo escarlate, mas forçando mais que minha timidez podia suportar eu respondi:
-Acho que foi bom, mas gostaria de ensaiar um beijo de verdade, nunca se sabe quando será necessário.
Ela olhou-me com ar de quem não acreditava; aquele que as mães fazem quando sabem que o filho está mentindo, mas respondeu:
-Ah, claro, por que não? Mas você sabe como faz?
Chegara, enfim, à hora da verdade, respondi com sinceridade:
-Não, mas você pode me ensinar.
Eu estava tão encabulado que só conseguia olhar para meus pés, ela com doçura e suavidade disse:
-Sabe de uma coisa? Eu sempre achei você uma gracinha, mas você nunca falava comigo...
-Bom, na verdade, eu nunca falo com ninguém – respondi-lhe com muito mais confiança agora. Ela sorriu, e odiei aquele sorriso, se aproximou de mim e disse:
-Faça exatamente o que eu fizer, mas sempre pro lado oposto entendeu?
-Sim
Beijamo-nos, e foi bom, ficamos ensaiando a tarde toda, ora a peça ora os beijos, fui para casa feliz; naquela época, uma tarde aos beijos era tudo que um garoto de treze anos podia querer. Começamos a namorar alguns ensaios depois e, quando finalmente chegou o dia, a nossa parte do teatro foi a mais aplaudida e tiramos juntos um dez. A professora veio até a mim no fim da aula e me disse:
-Não disse que o teatro te curaria?
-Bom, Professora, não quero contradizer a senhora, mas creio que quem me curou foi a Amanda.
Sorri então para minha namorada odiando-a como no primeiro dia em que a vi. Muitos anos mais tarde, Apesar de eu não ser o galã da novela das oito, casamo-nos e desta feliz união nasceram-nos três meninos e, se querem saber, eu ainda a odeio.