348-O VELHO BOTICARIO - Eutanásias poramor

Era do tempo em que se escrevia farmácia com ph e o proprietário, que manipulava as drogas e aviava as formulas conforme receituário médico, era tratado como boticário. Isso mudou há muito tempo e o velho Armando Guerra, agora com mais de oitenta anos, quase já nem se lembra daquelas eras. Entretanto, tem boa memória para as fórmulas e as combinações de drogas. Mantém em seu escritório ou gabinete uma prateleira cheia de vidros remanescentes da “Pharmácia Boa Saúde”, herdada do pai e que administrara por mais de cinqüenta anos.

— Já curei muita gente com esses restinhos de droga que tenho aqui em casa. — Falava sem gabolice.

Yolanda, a filha única, implicava com a “mania” do pai.

— Pára com isso, papai. Qualquer dia o senhor engana na fórmula e ainda acaba matando alguém. — Falava em tom de brincadeira, mas temia, sim, que o pai fizesse alguma besteira com os pós e líquidos dos potes e vidros.

A mulher do velho farmacêutico, Dona Vilma, tem a mesma idade do marido. Vítima de insidiosa doença, que a filha evita falar o nome por pura superstição, jaz na cama há mais de ano. O marido sofre ao ver a companheira padecer sem esperança de cura e ainda mais por não poder fazer nada.

A filha vive para cuidar dos pais e não é de muita conversa. Permaneceu solteira, assumindo a obrigação filial. Magra e alta, forte e disposta, não pára um minuto enquanto está acordada. Administra com eficiência a casa, ajudada por Amélia, uma antiga e dedicada empregada. Cuida pessoalmente da mãe, dando-lhe o banho diário, arrumando-a na cama, ajeitando travesseiros, almofadas, lençóis e colchas, a fim de que a doente esteja sempre confortável. Ministra os remédios e passa horas assentada ao lado da mãe.

O sobradinho é o patrimônio que resta à família. Embora não seja ideal para abrigar os velhos, a casa é confortável. No andar de cima estão os quartos, um banheiro e o gabinete do velho; no andar inferior, as demais dependências: salas, cozinha e outro banheiro. O grande inconveniente é a escada de quarenta e três degraus que leva ao segundo patamar. Entretanto, Armando ainda é ágil e sore ou desce com presteza.

Yolanda recebe aposentadoria e o pai tem algum dinheiro aplicado em poupança. Dá para viverem modestamente, mas os remédios para a mãe estão desequilibrando o orçamento. Enquanto a filha se preocupa com a mãe e o dinheiro, o pai fica aflito com o estado da mulher.

— Coitada...Até quando vai durar este sofrimento?, pensa, ao ver que as crises de dores são cada vez mais freqüentes e só passam com doses de morfina. Se eu pudesse fazer alguma coisa por ela...

Ás vezes, tem idéias não muito ortodoxas. Teve educação católica, mas agora seu humanismo supera os preceitos (e preconceitos) religiosos. Deixou de acreditar em muitos dogmas e vendo a mulher naquele estado terminal, não pode evitar certos pensamentos. Pensa cada vez mais na morte, que é um simples portal, e na vida além, que deve existir, ainda que por simples conclusão de raciocínio lógico. No seu ponto de vista, a morte é apenas uma passagem, um portal dimensional. Passa-se desta para outra dimensão, incomparavelmente mais adiantada, onde o espírito, ou a energia de que são constituídos todos os seres humanos, tendo abandonado a carcaça terrena, é reintegrado à energia universal. Com essa compreensão espiritual, não vê sentido no sofrimento da esposa. Não há nenhuma virtude em manter a vida num organismo em sofrimento.

— Papai, vamos subir. Tá na hora de dormir. — O comando da filha desperta o velho, cortando a linha de pensamento.

Deitado, as horas de vigília são longas. Os velhos precisam cada vez menos de horas de sono, talvez um medo atávico de fechar os olhos e não acordar mais. Mas o pensamento continua dando voltas, desdobrando-se em infinitas combinações, hipóteses, julgamentos, intuições ou premonições.

Pensa na mulher. Que sentido faz tanto sofrer? As pessoas deveriam ser livres também para morrer. Mesmo quando essa vontade não for manifesta, o alivio do sofrimento deve ser permitido. Em nome de que deus de compaixão, de bondade, se torna obrigatório o sofrimento? A compaixão pelos doentes terminais, pelos velhos decrépitos e caducos, deve ser total. Sem surpresa, chega a pensar na eutanásia. É quando, nas madrugadas frias, ouve os gemidos da mulher. Sua filha já está à cabeceira, atendendo com a seringa de morfina, quando ele chega.

— Pronto, pai, ela já está medicada. Pode ir se deitar.

Volta ao quarto, deita-se, não dorme mais, pensando em como poderá abreviar o sofrimento da esposa.

Noite de domingo. A filha, tendo arrumado a mãe, passa pelo gabinete do pai. Fica tranqüila ao observá-lo, atento à leitura de uma revista.

— Vou ver um pouco a tv. O senhor não vai dormir?

— Tou sem sono. Vou ler mais um pouco.

Ouve os passos da filha descendo a escada. Depois, o barulho da tv, as vozes eletrônicas e os ruídos do programa de auditório.

Com cuidado, ergue-se da cadeira. Abre uma das portas do armário de drogas. Retira uma seringa, insere num frasco e puxa o embolo, enchendo-a de um liquido amarelado. Agindo sempre silenciosamente, vai ao quarto da esposa. Volta alguns minutos depois, a seringa vazia na mão trêmula. Devolve a seringa ao seu estojo, abre outro frasco, de onde retira alguns comprimidos. Vai até ao banheiro, enche um copo d’água e toma os comprimidos.

Ainda tenho uns cinco minutos, pensa. Sai do banheiro, desce a escada, dirige-se à sala onde a filha cochila defronte à tv.

Senta-se ao lado da filha, que estremece e acorda com a presença do pai.

— O senhor ainda tá acordado?

— Não tenho sono. Vou ficar com você, vendo a tv.

Os dois ficam de olhos fixos no aparelho. As imagens se sucedem, durante uns cinco minutos ou mais. De repente, o pai tem um estremecimento. A filha, ao lado, o ampara.

— Pai, vamos pra cama!

O velho, entretanto, descamba, frouxo, no ombro de Yolanda.

— Pai! Pai! O senhor está...?

Não termina a pergunta. Aterrorizada, vê que o pai está morto.

ANTÔNIO GOBBO –

2 DE JULHO DE 2005

CONTO # 348 DA SÉRIE MILISTÓRIAS -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/08/2014
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