342-HISTÓRIA DE LOTÁRIO -

Gostava de caçadas, não aprendeu ofício nem tinha como estudar. Entre as andanças pelas matas e montanhas, Lotário tinha tempo também para vadiações na cidade, sítios e fazendas. Emprenhou Vivalda, filha do Coronel Nicanor, fazendeiro de posses, terras, gado e muitos alqueires de cafezais. Quando casou, forçado pelas circunstâncias, os amigos de jornadas acharam que tinha dado o golpe do baú.

Mas o que poderia proporcionar uma vida séria e sem percalços, para o amante de aventuras tornou-se um peso. O sogro lhe cedeu um pedaço das terras de sua fazenda, um local chamado Ponte Velha, uns trinta alqueires que ficavam do outro lado do rio.

— Presta atenção, Lotário. Vê se cria juízo. É uma oportunidade só que estou lhe dando — avisou o sogro, quando avalizou o genro para comprar um rebanho inicial e começar a vida

Entretanto, a inépcia e, principalmente, ausência de Lotário fez com que em menos de dois anos, perdesse tudo. Passou a morar de favor na casa da fazenda do sogro, antiga sede sem uso, pois o sogro morava na cidade.

— Estou fazendo isto por causa de minha filha. Você não merece um vintém de confiança. Agora, trate de ganhar seu sustento e sustentar Vivalda. É sua última chance.

Lotário não levava jeito para firmar o pé e estabelecer raízes. Tornou-se um cigano. Deu em viajar pretextando arranjar trabalho em outros lugares. Não parava, não se aquietava. Pensou que talvez pudesse encontrar trabalho em São Paulo, a Meca de quem queria vencer na vida. Na década de ’40, até pedinte de esmola conseguia emprego ou serviço na grande capital. Pois lá foi ele tentar a vida.

O sogro era rigoroso. Quando o genro saiu de casa sem destino, deixando a mulher sozinha no casarão da fazenda, chamou o capataz e ordenou:

— Gaudêncio, quero que você ajude minha filha no que for preciso. Ela tá sozinha lá na casa grande, pode haver perigo. Quero que você vigie o local, não deixa nada acontecer pra Vivalda.

— Pode deixar, patrão.

Gaudêncio tinha sido vaqueiro, campeara boi pelo pantanal, mas agora estava estabelecido como capataz do coronel Gaudêncio. Obedecendo às ordens, apresentou-se à filha do patrão:

— Seu Nicanor mandou que eu ficasse às ordens da senhora. Quando a senhora precisar, pode me chamar seja de dia ou de noite, tou de prontidão.

Não demorou muito, era constante sua presença no casarão, para levar recados ou trazer encomendas que a mulher pedia fossem compradas na cidade. O pai, nas ocasiões em que aparecia na fazenda, principalmente na colheita do café, não dava muita satisfação à filha, como se ela fosse a culpada do comportamento do marido.

Após três anos sem dar notícias, eis Lotário de volta. Vivalda o recebeu de má vontade. Mas o relato das dificuldades do marido, que dizia ter conseguido trabalhar em um colégio — não se sabe bem se teria sido vigia ou faxineiro — comoveram-na. Ele não mostrava interesse em explicar como tinha sido sua vida na grande capital. O certo é que trouxera na mala prova de que trabalhara, realmente, em alguma escola: centenas de tocos de lápis de cor e comuns, borrachas, cadernos com muitas folhas em branco e até mesmo novos, sem uso.

— Mas, para que isso, Lotário?

— Pra provar que trabalho na escola. Os alunos esquecem essas coisas nas carteiras, e toda tarde passo fazendo a coleta. Dá pros seus sobrinhos.

Após alguns meses de vida ociosa na fazenda do sogro, de novo meteu o pé na estrada. Sem avisar pra onde ia, deixou de novo a mulher como uma viúva de marido vivo.

Ela fica bem, o Gaudêncio cuida dela, não preciso me preocupar, pensava, na mais absoluta falta de senso.

Voltou dois anos depois, atacado de maleita. Dizia ter trabalhado em Cubatão.

A febre amarela fora adquirida nos brejos e pântanos da baixada no litoral de São Paulo,

onde grandes fábricas estavam sendo construídas. Doente, fraco, a boca totalmente sem dentes e magérrimo. Suas roupas esgarçadas e remendadas, um farrapo humano.

A mulher, cheia de paciência, toma por empreitada a cura do marido. Procura ajuda de Dona Zuca, velha parteira e benzedeira, famosa por conhecer o poder de cura de milhares de plantas da região.Diziam que era feiticeira e tinha partes com o tinhoso.

— Leva essa poção e dá três colheres por dia: de manhã, ao meio-dia e antes de dormir. Vou fazer uma reza pra ele sete dias nesta semana.

Seja pelo remédio , seja pelas rezas, Lotário apresentou considerável melhora em poucas semanas. E ainda sem ter se recuperado totalmente, atacou-lhe de novo a vontade de sair de casa, rodar o mundo.

— Tá louco, marido? Cê nem bem saiu da cama, já tá pensando em besteiras!

Nada demoveu o cigano de iniciar nova viagem. Desta vez, não foi pra muito longe. Tomou o trem-de-ferro e desceu no final da linha. Pequena cidade erguida ao redor de uma fábrica de cimento.

Vivalda era mulher forte, vistosa, e Gaudêncio, solteirão ou viúvo não se sabe com certeza. Davam-se bem. Ele, prestativo e sempre disposto, não media esforços para agradar a filha do patrão. Ela, solitária no velho casarão, estava sempre pedindo ajuda ao capataz

Nos períodos em que Lotário passava no casarão da fazenda com a mulher, Gaudêncio nem era visto nas imediações, numa atitude de respeito e mesmo por ser desnecessária sua presença.

Nas ausências de Lotário, davam-se bem, afinal. Tão bem que o capataz extrapolou suas ordens, e passou a servir a filha do patrão também em atribuições que não lhe tinham sido incumbidas. O isolamento da fazenda, com poucos empregados e muitos locais para encontros favorecia os dois.

Mais alguns anos, e eis de novo o cigano de volta ao lar. Como das vezes anteriores, não deu notícias dignas de fé, sobre suas atividades. O certo é que voltara mais doente ainda. Não tendo se cuidado da febre terçã, agora estava atacado dos pulmões, isto é, tuberculoso, por conta da fumaça e do pó da fábrica de cimento. .Uma tosse comprida, que geralmente terminava em escarros de sangue. Esquelético, mal agüentava ficar de pé.

Novamente a esposa o acolheu. Não demonstrou mágoa nem alegria. Apenas cumpria sua obrigação.

— Gaudêncio, vai com a charrete até à cidade. Procura Dona Zuca, traz ela aqui, porque o Lotário não tá nada bom.

No caminho, a conversa entre o capataz e a velha feiticeira se estende. Se o relato do empregado foi verdadeiro ou não, ninguém saberá dizer. Quando chegou ao casarão, antes de entrar no quarto do doente, fez questão de ter uma longa conversa com Vivalda.

— Estou cansada desta vida. — Vivalda confidenciou à curandeira. — Sou casada mas num tenho marido. Não sei o que fazer.

— Minha filha, — finalizou a visitante — Você não merece este homem.

— Quero que a senhora me ajude a acabar com isso tudo.

A velha não respondeu, mas dirigiu a Vivalda um olhar de cumplicidade.

— Sim, você já sofreu muito. Vamos acabar com este sofrimento.

Entrou no quarto escuro e mal-cheiroso, ouvindo o arfar angustiado do doente. Agachando-se ao lado da cama, apalpou o peito, passou as mãos pela cabeça, testa e face de Lotário. Permaneceu imóvel durante alguns minutos, mergulhada em profunda oração ou meditação. Ao levantar-se a bruxa, o homem já respirava melhor.

— Ele tem de ficar sempre na cama. Não deixa ele levantar pra nada. O quarto tem de ficar sempre fechado. — A velha recomendou à esposa.

Saindo do quarto, já se despedindo, avisou:

— Vou mandar pelo capataz uma garrafa de poção pra ele tomar. Uma xícara pequena todos os dias, em jejum.

O tratamento foi seguido à risca. Vivalda foi percebendo que o marido ficava mais quieto a cada dia. Se pouco falava, passou apenas a responder às raras perguntas que ela lhe fazia, como “dormiu bem?” ou “está se sentindo melhor?”, com gemidos ou grunhidos.

Antes de terminar de tomar o conteúdo da garrafada, Lotário morreu.

Não houve comoção nem estremecimento pela sua morte. Os parentes, poucos, apareceram no velório, e ninguém lamentou a morte. A mulher também não demonstrou muita dor e o Coronel nem tomou conhecimento.

— Foi simbora quem já tava sobrando. — comentou com os amigos de carteado.

Sobrando? O que queria dizer o coronel? Ninguém atentou para o sentido da afirmação. Mas o certo é que, viúva, livre, Vivalda nem esperou o final do luto para se casar com Gaudêncio.

Antônio Gobbo -

Belo Horizonte, 1o.de maio de 2005

Conto # 342 da Série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/07/2014
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