311-AMOR DE FEITICEIRA-

Dona Zuca era, ao mesmo tempo, parteira, lava-defunto, benzedeira, adivinha e outras coisas misteriosas. Como parteira, fora responsável pelo êxito de centenas de parições na cidade de São Jerônimo e até do distrito de Córrego Frio. Como lava-defunto, estava sempre presente quando acontecia um falecimento, para preparar o falecido (ou falecida) para o velório e enterro: lavar, trocar de roupa, eventualmente fazer a barba (no morto macho) ou elaborar um penteado bonito (na morta mulher, se ainda tivesse cabelo suficiente). Benzedeira de recursos, fazia suas rezas na presença do doente ou à distância, quando o paciente não podia chegar até ela ou em casos de urgência.

— Dona Zuca, faz uma benzeção pro João da Nina, que ele foi picado de cobra, tá ruim no hospital.

No hospital e na maternidade ela não punha os pés. Indesejada pelos médicos e enfermeiras, fora barrada na entrada inúmeras vezes e desistiu de visitar “seus” pacientes. Mas fazia suas rezas à distância e preparava mezinhas para os parentes levarem, às escondidas, aos doentes hospitalizados. Isto era sabido e divulgado às claras, juntamente com boatos de que a misteriosa mulher também “fazia anjinhos”, “tirava nenê”, ou seja, fazia abortos em sua casa.

Zuleica Tinhorão fora uma mulher grande e talvez bonita. Agora, com quase noventa, era apenas sombra da figura impressionante de antanho: alta, mulata de longos cabelos pretos que quase lhe chegavam à cintura, encorpada sem ser gorda, dotada de grande força física, que a ajudavam nos misteres de parteira e no cuidado com os defuntos.

O marido, bem ao contrário, era um homem franzino, mirrado, fala fina e fraca, bigodinho à Carlitos na face encovada. Seu aspecto geral era de uma pessoa doente. Seu Deque — poucos sabiam se chamar Melquiezedeque — vivia de entregar encomendas da patroa: poções, saquinhos de erva para serem dependurados no pescoço, garrafadas, marcação de horário para atendimento, etc. Um mero moleque de recados, mas bem amado pela feiticeira.

Se a mulher era misteriosa, a casa em que habitava era um verdadeiro mausoléu na Avenida Dr. Antão. Quem a via pela primeira vez, estranhava não só pela bizarrice da construção como pela fuligem que cobria as paredes, tornando-a negra e quase que invisível em noite sem lua. Construída rente à calçada, a porta de duas folhas, alta e estreita, abria-se diretamente para o passeio. As três minúsculas janelas na imensa parede da frente mais pareciam aberturas de uma prisão. Portas e janelas sempre fechadas.

As poucas pessoas — entre elas a comadre Belmira, amiga de dona Zuca desde os tempos do grupo escolar — que conheciam o interior da casa, estranhavam também a repartição interna. Um grande corredor central ia da porta de entrada à cozinha. Várias portas abriam-se para este corredor: da sala, dos quartos, do cômodo de despejos, do banheiro. Muito alto e parcamente iluminado, era como que a câmara de admissão a um antro de terror.

O quintal estendia-se por uns bons cem metros e submergia num brejo malcheiroso, pântano de detritos e miasmas. Pedras espalhadas pelo terreno, monturos de cisco, entre canteiros mal cuidados com ervas medicinais e touceiras de arruda, comigo-ninguém-pode, erva-do-diabo, para benzeduras e simpatias. Arbustos mirrados, árvores desfolhadas, erguendo ao céu a galharia angustiada. O manto de velhice estendendo-se sobre tudo. Um tronco carbonizado era o que restava de alta árvore atingida por um raio.

Até mesmo as bruxas e feiticeiras, quando em sua condição humana, estão sujeitas à deterioração do corpo, e, por conseguinte, são igualmente ceifadas pela foice da Macabra Senhora.

Um dia Dona Zuca ficou doente. Ela, que curava todo mundo, caiu de cama. Médico não quis, o marido passou a ser seu enfermeiro. Era ele quem ia ao quintal colher as ervas por ela indicadas e preparava os chás, as cataplasmas e os ungüentos, conforme determinava a mulher.

Visitas, poucas, pois a clientela tinha por Dona Zuca mais temor e respeito do que amizade ou agradecimento.

Na tarde de julho, o vento frio açoitando as árvores e levantando folhas secas, dona Belmira foi visitar a comadre de tantos anos. A casa, além de lúgubre, estava gelada, pois o intenso frio exterior entrava pelas frestas de portas e janelas. Encontrou-a prostrada. Os olhos quase fechados, face encovada, as rugas destacadas pela fraca luz das lamparinas dependuradas nas paredes. Velas de aromas estranhos espalhadas sobre a cômoda e criados-mudos. À hora da despedida, a amiga promete:

— Amanhã cedo volto pra lhe ver. Vou lhe trazer um bolo de fubá, de que a senhora gosta tanto.

— Num carece não, comadre. — A voz por um fio, pede à amiga: — Manda o Deque vir aqui no quarto.

Belmira vai até a cozinha e dá o recado. O homúnculo entra no quarto, a ver o que a mulher deseja. Belmira, saindo pelo corredor, ouve, sem querer, a ordem da comadre para o marido:

— Deita aqui, Deque.

Sai sem fazer ruído nem ouvir mais nada.

No dia seguinte, o casal é encontrado: ambos mortos, abraçados no enlace total e final. A feiticeira havia levado consigo o companheiro para a eternidade.

ANTONIO GOBBO –

BELO HORIZONTE, 11-NOVEMBRO-2004

CONTO # 311 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
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