Por mais um sorriso

Deixou cair o corpo lentamente sobre o sofá. Fabrício atrapalhava-se com a simples presença de Letícia. Se havia um rosto na face da Terra a qual aquele rapaz desejaria contemplar era este, o rosto da mulher que se debruçava puxando e empurrando as almofadas, como se tentasse encaixar as peças de um quebra-cabeça.

As mãos que ora se entrelaçavam, ora se desprendiam numa separação quase insuperável, funcionavam como as de um maestro a ordenar a criação de um universo de beleza. Passeava os dedos pelos cabelos, provocando calafrios e êxtases. Mas havia algo além da timidez que o impediam de falar palavra: o perigo do sorriso. Fabrício não sabia como evitar aquele desejo e sofria como um Werther, sem possuir aquilo que lhe era mais caro. 

A chuva corria e dançava em gotas violentas. A música parou, mas Fabrício ainda não conseguia encontrar o que dizer. Letícia o fixou no olhar mas desviou logo em seguida, pois ainda tinha medo de o encarar.

Em pouco tempo os convidados chegariam. Uma transformação rápida, uma luz que descesse iluminando o anagrama que lhe atravessara a garganta naquele momento seria redentora. Pensou na sala de aula, quando conheceu Letícia, quando a viu pela primeira vez. Olhos ardendo, fala encaixada, medrosa como uma novata não podia deixar de ser. Os demais gritavam piadas: caipira, menina-do-mato, roceira…

Alguns anos depois, lado a lado na universidade, os demais já não zombavam dela, mas a admiravam, alta, empinada, os vestidos esvoaçando e a sensualidade de princípio que lhe era peculiar na simpatia.

A chuva cumpria seu papel, a música ainda estava parada, o olhar de Letícia perdido nas paredes, Fabrício elucubrando à meia-luz. As cadeiras da sala, a correria da universidade. Caipira! A idéia de acender todas as luzes, de trocar o disco, de desabar no sofá. Bateu as mãos, apertando-as. Letícia prestou atenção, sorriu. E sorriu. Só havia uma luminária acesa, Fabrício trocou o disco e sentiu-se satisfeito. Um sorriso conquistado.

Os colegas que gritavam impropérios se apagaram. Letícia comentou qualquer coisa sobre a demora dos convidados, encostou-se e encolheu as pernas abrançando-as como se estivesse com frio. A primeira a chegar. Tocou a campanhia, esperou, Fabrício abriu a porta e não pôde mais falar. A boca lhe era demasiado.

Outro disco, pouca luz, a porta fechada à espera da campanhia. A chuva. Dois dias apenas. Dois dias separariam os cinco amigos, mas não só eles, a ela, e de longe haveria troca de mensagens, sorrisos por correspondência, ligações mudas e encontros marcados que nunca se realizariam.O rosto estampa o choro antecipado, Letícia se refaz, inclina a cabeça para trás, pensa. Fabrício trata da própria imobilidade; quer acender as luzes, atender à campanhia quieta, olhar a chuva ou procurar palavras.

Olhares cruzados, inevitável. Fabrício deixou-se escapar por uma fresta de coragem, foi até a cozinha e trouxe uma bebida. Quando passou o copo a Letícia, tocou levemente em seus dedos, suaves e limpos. Desdobrou-se para agradá-la, serviu vinho e sentou-se ao lado, deixando pouco espaço. Baixou a garrafa ao chão, ergueu a taça, os olhares se cruzaram de novo, a roceira se tornou a universitária empinada e maquiada, esvoaçante.

A chuva parou, o disco continuava e os dedos asseados abraçavam a taça enquanto o vinho balançava.Fabrício gravou o instante em que as taças se encontraram. Uma fração de segundo que se prolonga agora, enquanto olha as margens do lago. Há uma única luz, do outro lado, num casebre. As estrelas se escondem e o vento anuncia a chuva, enquanto Fabrício caminha para casa. Entra, acende a luminária, pega um livro na estante, senta-se na poltrona. A campanhia toca: Letícia lhe traz mais um sorriso.

Guilherme Pedrosa Lima
Enviado por Guilherme Pedrosa Lima em 15/07/2014
Reeditado em 16/07/2014
Código do texto: T4883430
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