303-A AMANTE DO VELHO CHICO-Série Mulheres Memoráveis
Ploc-poloc - ploc poloc - ploc poloc.
Na tarde quente o trem percorria a desolada região do interior baiano. O sol, de uma luminosidade indescritível, torrava a paisagem. Trechos da caatinga intercalavam-se com campos semi-áridos e, muito raramente, pequenos aglomerados de arbustos enfezados podiam ser vistos, seguindo os vales mais profundos. Poucas pessoas no vagão de passageiros.
Ploc-poloc – ploc-poloc.
É uma composição mista, de vagões com mercadorias e apenas um vagão de passageiros. Na frente, através da porta envidraçada, ela podia ver o vagão de lenha e a coluna de fumaça erguendo-se da locomotiva. O calor era amenizado por algumas janelas abertas, pelas quais entravam, também, algumas fagulhas expelidas pela máquina à frente. Duas crianças brincavam, correndo pelo corredor. A maioria dos viajantes cochilava.
Ploc-poloc.
Maria Helena não tem companhia no banco que ocupa. Por isso, pode estender as pernas e recostar-se mais à vontade. É uma jovem com idade aparente de vinte anos, morena, bem morena, magra e de estatura média. Os cabelos negros, lisos e compridos cobrem-lhe os ombros. Não é uma moça que chame a atenção, a não ser por seus grandes olhos, melancólicos e tristes.
Ploc-poloc – ploc-poloc – poloc-ploc
Há quase doze horas está naquele trem. Tendo embarcado em Serrinha, seu destino é Juazeiro, nas margens do Rio São Francisco – ou Velho Chico, como é carinhosamente conhecido. Mais de quinhentos quilômetros de chão entre as duas cidades, na direção do noroeste. Esta viagem não estava nos seus planos. O desconforto é grande. Ouvindo o monótono ploc-poloc, ploc-poloc da composição, finge ignorar o calor, a sede e as moscas, mergulhada em seus devaneios e recordações.
A moça tem vívida memória de seus melhores dias na capital: como cantora na Rádio Excelsior, viveu seu momento de fama, que curtiu bem. Mas o amadorismo da carreira artística forçou-a a procurar um emprego que lhe proporcionasse meios de se sustentar. Por alguns anos trabalhou num departamento estadual, estreitamente ligada a importante político. Daí a se inserir nas atividades políticas foi um curto passo. E eis Maria Helena envolvida com reuniões do partido, ajudando na organização de protestos e marchas pela cidade e enfrentando policiais em entreveros de ruas. Uma única vez tinha sido presa, mas liberada sem maiores complicações, por intervenção de seu antigo amigo, então alçado ao cargo de secretário do governo estadual.
Veio o golpe militar de 31 de março de 64, e com ele o sepultamento dos ideais de Maria Helena. A princípio, não teve uma visão exata do que estava acontecendo no país. Mas na primeira semana de abril, se viu obrigada a buscar refúgio, com ajuda de companheiros, em Serrinha, no interior do estado. Ali permaneceu, incógnita, durante um ano. Ali, recebeu um aviso de que seu paradeiro era já conhecido do Departamento de Ordem Política e Social e que sua prisão era certa, se não procurasse outro esconderijo.
Tenho de sumir de vez. Vou pro São Francisco e me escondo em qualquer vilarejo às margens do rio. — Assim pensou e assim fez. E ali estava a moça, moída de canseira, sem saber a trama que o destino lhe preparara.
Ploc-poloc – ploc-poloc – ploc-poloc....
O trem chegou a Juazeiro pelo meio-dia. Maria Helena, carregando a pequena mala de papelão, onde levava todos seus pertences, reduzidos ao máximo, saiu da estação da estrada-de-ferro e foi diretamente para o atracadouro dos barcos. A fome apertava o estômago. Sem perder de vista o rio, ela comprou um sanduíche, que comeu de pé, encostada ao balcão.
Meu Bom Jesus! Já faz um ano que estou escondida, fugindo. — pensou, ao ver a folhinha dependurada na parede, marcando o dia 26 de março de 65. Teve de se apressar, pois notou o movimento do atracadouro, indicando a saída do barco. Correu e foi a penúltima pessoa a entrar na gaiola. Um homem magro e ágil correu para tomar o barco, como se tivesse decidido embarcar no último momento.
A embarcação conhecida como gaiola é típica do Rio São Francisco. Movida pelas pás rotativas colocadas na parte traseira, desliza com suavidade, produzindo um som de leve cachoeira que induz à sonolência. Redes estão estendidas por todo o convés inferior. Nem todas estão ocupadas. Maria Helena escolhe uma, mais isolada e se ajeita como pode. Uma garoa finíssima, produzida pelas pás, refresca seus pés, pendurados fora da rede.
O barco sobe o rio. A moça comprara passagem para o percurso mais curto, isto é, para a próxima parada, que será Sobrado.
— O barco não pára em todas as localidades. — O comandante lhe explicou, quando foi pagar a passagem. — Tem muito vilarejo às margens, e se a gente parasse em cada corruptela, nunca chegaria ao nosso destino.
— Onde termina o seu curso? — A moça mostra-se interessada. Deseja conversar, pois não tem falado com ninguém nos últimos dias, preocupada em não se revelar.
— Tenho dois passageiros que vão até Xique-Xique. Mas poderão aparecer outros, querendo ir até Barra ou Bom Jesus da Lapa. Dependendo da quantidade de passageiros, vou subindo o rio. — Demorando-se nas respostas, o chefe do navio demora-se também nos olhares para a beleza da moça.
Há uma empatia mútua entre Maria Helena e o comandante Raimundo Dutra. O comandante inspira confiança à moça. Ela sente-se segura ali no barco, entre pessoas humildes.
Nem todos os passageiros eram desconhecidos. O homem que embarcara na última hora sabia bem quem era ela. Não podia perder de vista a moça, que vinha seguindo desde o início de fuga. Na primeira conversa que teve com o comandante Dutra, o colocara a par de sua missão.
— Vou prendê-la quando atracarmos em Sobrado. O senhor fique quieto, que tudo vai dar certo.
O comandante antevia a triste sina da moça: presa por um reles pau-mandado, sem credenciais, talvez um assassino profissional, que, com toda a certeza, a levaria para um lugar ermo, onde a eliminaria. Já ouvira falar de casos assim.
Em outras conversas com a jovem, procurou saber a sua versão, que também era um caso comum naqueles momentos de turbulência política. Afeiçoado à jovem, o comandante preocupa-se com seu destino.
— Olhe, menina, acho que você poderia estender sua viagem até mais além de Sobrado. Soube que lá tá cheio de meganhas, e a senhorita poderá ser descoberta. — Em tom de confidência, Dutra alerta a morena, pondo em ação um plano para livrá-la das garras do seu perseguidor.
— Não tenho dinheiro pra ir mais longe. — Ela reluta em estender a viagem.
O comandante conta-lhe, então, que ali mesmo, no barco, tem um elemento que irá prendê-la assim que deixar o barco. Ela se apavora, mas ele a tranqüiliza.
— Não se preocupe. Você viaja por minha conta até onde quiser ir. E enquanto estiver no barco, estará sob minha proteção. .
Ao encostar o barco no precário cais de madeira de Sobrado, o comandante fez com que Maria Helena ficasse ao seu lado. Tremendo, as mãos suando, com a mala nas mãos, a moça não sabia sequer quem era o seu perseguidor. Alguns passageiros desceram, subiram outros. O pretenso policial permaneceu no barco, à espera de que a moça também descesse. O comandante então lhe falou, com a autoridade que exercia o posto:
— O senhor pode descer, que ela não vai desembarcar, não. A moça continua no barco.
— Não foi isso que combinamos.
— Não combinamos nada, moço. O senhor desce ou sou obrigado a expulsá-lo do barco.
— O senhor não pode...
— Posso, sim. Aqui dentro do barco, posso tudo. Sou o comandante, e como tal, sou a lei e a justiça. Desça já e esqueça sua missão.
O “agente secreto” tentou sacar a arma, mas o comandante foi mais rápido: com um safanão, atingiu a mão direita do outro, lançando o revólver fora do barco.
— Saia já e sem confusão. Ou lhe jogo fora do barco.
— O senhor me paga!
— Vai com Deus. Toma cuidado pra não escorregar na prancha.
Maria Helena tremia. Quase desmaiou. A prancha foi imediatamente levantada, e o barco, a todo vapor, deixou o cais. Os passageiros, sem saber de detalhes, cochichavam entre si.
— A senhorita vem para cima, deite-se no meu camarote.
O “camarote” era uma bitácula na parte superior do barco. Servia, a um só tempo, como cozinha, quarto de dormir e sala, de uso exclusivo do comandante. A moça deitou-se no estreito catre. Não parava de tremer.
— Calma, menina, o perigo já passou. — A voz de baixo profundo de Raimundo tentava aquietá-la, ao mesmo tempo em que lhe oferecia um copo de água.
Quando se recuperou do acesso de pânico, a realidade se lhe apresentou com toda a clareza.
— Não vou mais poder sair do barco. “Ele” vai estar em cada porto, em cada cidade que o barco encostar. E mesmo estando aqui, quem vai garantir que outro policial entre no barco, como passageiro?
— Deixe por minha conta. Confie em mim, tudo se resolverá.
A confiança pelo comandante aumentou. Cresceu a camaradagem entre os dois. A amizade e a compreensão mútua foi se aprofundando.
Homem solitário, Raimundo sempre vivera navegando o rio. Fora criado no rio, não se casara e os vapores que já comandara eram como que membros de sua família. Dedicava aos ex-barcos o mesmo afeto de um pai. “Sou casado com o rio”, costumava dizer.
Para evitar qualquer delação de sua presença no barco, Maria Helena ficou confinada na parte superior: o comandante cedeu-lhe a cama, e descansava em uma rede, que armou pelo lado de fora do seu camarote. Durante o dia, ela cozinhava e cuidava do camarote e das poucas coisas suas e do comandante.
Não se passou muito tempo, e veio a proposta de Raimundo:
— Já que estamos juntos, porque não juntamos nossos trapinhos?
— O senhor quer dizer...a gente se casar?
— É isso mesmo.
— Mas o senhor já é casado com o rio.
A princípio, ela achou graça. Mas depois, a semente lançada, foi se acostumando com a idéia. E casaram-se, sim, numa cerimônia simples em um pequeno povoado na remota região da divisa com Minas.
A felicidade da moça foi toldada durante todos os anos em que viveu confinada nos barcos dirigidos pelo marido. O confinamento gerou uma mania, que aos poucos se transformou em obsessão e virou uma verdadeira fobia: a síndrome do pânico, o medo de sair do barco e ser presa. Entrava em desespero com a visão de qualquer passageiro melhor trajado. Os dois ajudantes do comandante foram advertidos no sentido de não comentarem a presença da “patroa” com nenhum estranho – ou seja, com nenhum passageiro. Raramente aparecia no convés dos passageiros. Só saía do barco à noite, nas ocasiões em que permanecia atracado nos cais das pequenas cidades às margens do Velho Chico. Nessas ocasiões, o comandante, que conhecia todo mundo nas margens do rio, a levava para um hotel ou uma pensão de sua confiança. Passavam, então, algumas horas de sossego. E de romance. Retornavam ao barco sempre antes do amanhecer. Nunca foi molestada por nenhum passageiro e cessaram as notícias das perseguições políticas. Maria Helena, entretanto, nunca se livrou do medo.
Para melhor passar as horas de ociosidade forçada, no seu confinamento voluntário, aprendeu a tecer tapetes com Manuelzinho Nonato, o mecânico do barco. O homem estava sempre com suas mechas de linhas e agulhas de taquara, tecendo delicadas peças que ele mesmo vendia aos passageiros. Maria Helena foi uma aprendiz de grande habilidade que logo descobriu os segredos da tecelagem. Em pouco tempo, produzia peças tão belas quanto as de Nonato e logo, logo, superou o mestre.
Durante exatos dez anos, viveu com seu comandante. Teve três filhos, todos criados a bordo das embarcações. O velho marinheiro morreu repentinamente, em pleno comando da embarcação.
Maria Helena, viúva e com os três meninos para criar, estabeleceu-se em Petrolina. Superou seus temores e passou a viver do artesanato, sem jamais perder de vista o Velho Chico, onde se refugiara durante tantos anos. Gostava até de contar sua epopéia aos fregueses que mostravam interesse. E terminava sempre com um olhar distante para o rio, olhar em que saudade, gratidão e melancolia se misturavam. Então, encerrava o relato de sua vida e seus amores:
— O Comandante dizia que era casado com o rio. Pois eu posso afirmar que sou a amante do Velho Chico.
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Antonio Gobbo – Belo Horizonte, 14 de setembro de 2004 –
Conto # 303 da Série MILISTÓRIAS