Cidade de Vidro - Parte 4: Não Me Deixe Te Amar

Algumas palavras não saem de minha cabeça, desde ontem, quando Sophitia veio falar comigo. Amor é a principal. Amizade é a segunda, e de certo modo perturbadora. Oponente. Luta. Estas últimas duas vieram em conjunto, depois de ter lido o poema de Dylan Thomas. Não consigo me levantar de minha cama, e minhas lágrimas já secaram, incapazes de continuar rolando. A mão quente e leve de Niclauss acaricia minhas costas, tentando me consolar.

- Qual é? Chorar nunca ajudou ninguém – diz ele. Sua voz é baixa, - afinal, não queremos que meu pai chegue em casa e me pegue chorando e sendo consolado por uma amigo.

- Eu não tô chorando – digo, e minha voz voltou ao normal. Passa-se algum tempo de silêncio, até que eu suspiro e falo. Minha voz soa triste. – Se ela ao menos estivesse viva, eu não ficaria tão triste – digo, e é verdade. Sinceramente, não me importaria com nada do que descobri sobre Victoria e Sophitia, e desejaria a ela toda a sorte e a felicidade possíveis neste país. Mas não está...

- Sinto muito – ouço-o sussurrar. Sento-me em um pulo. Algo dentro de mim me manda abraçá-lo. Vai te fazer sentir melhor, diz essa vozinha para mim. Mas eu não o abraço. Não quero forçar a barra. Niclauss já fez muito por mim vindo aqui, e eu não quero fazer algo que eu imagino que vá ofender.

- Você bem que podia me contar seu segredo – digo. – Aquele que você ficou de me contar depois da aula, mas nunca chegou a contar...

- Não posso...

Eu imaginava que não... Mas quem sabe se eu...

- E seu eu disser que isso vai me fazer sentir melhor? – Mas ele só olha para mim, me dá um meio sorriso, e balança a cabeça. Eu sabia que isso era um não. Mas não custa tentar.

- Bem, pelo que posso ver, você já está melhor, não é? Já está tentando me persuadir... – Eu dou uma risada. É inevitável. Ele me faz sentir bem, isso é irrefutável e inegável.

- Não custa tentar – digo, e mantenho meu sorriso no rosto.

Mas algo muda. Muda nele, em sua expressão. Seu sorriso se esvai, e ele deixa de olhar para mim. Algo em mim muda. Um aperto, muito leve, se inicia em meu peito, toda vez que ele não olha para mim. Sinceramente, eu queria saber o que é isso, e, acima de tudo, por que eu sinto isso. Mas há coisas na vida que não podem ser explicadas, ou ao menos compreendidas. Há algo que ele precisa me dizer, mas ele não diz. Há algo que ele precisa tirar do peito, mas ele não tira. Como se eu pudesse ler sua mente, quase consigo ouvi-lo pensando: é muito pesado para colocar sobre os ombros de outra pessoa.

- Eu não sou o único que tem um segredo – diz ele. – Há algo que Wilhelm e Noam precisam contar também.

- Eu não ligo para os segredos deles – digo. – Eu quero saber de seu segredo, do que você guarda.

Mas ele não me diz. Só se levanta e sai.

Minha cabeça queima só de pensar nos segredos que tantas pessoas guardam de mim. Pergunto-me por que todos tem algo a esconder. Meu pai, meus melhores amigos, minha ex-namorada morta, Kornelius, o país todo. Sempre alguém tenta proteger algo, e prefere carregar tudo sobre os próprios ombros a me contar. E eu não gosto de não saber de certas coisas. Aposto que o segredo de Victoria era apenas a ponta do iceberg, apenas o começo de uma vida completamente escondida de mim.

Dentro da sala de meu pai, dou mais uma olhada em Mein Kampf. Será que este homem feio e cruel também tinha segredos a guardar?

- Pai? – chamo. Meu pai não afasta os olhos de seu plano de guerra. – Hitler tinha algum segredo? – pergunto. Ele levanta então os olhos dos papeis, e olha torto e fundo nos meus olhos.

- Por que a pergunta? – ele fala com sarcasmo, e me dá um sorrisinho sem graça.

- Curiosidade sempre – respondo. Ele balança a cabeça negativamente, e volta a seus planos.

- Como vou saber? Não o conheci pessoalmente.

Ai. Essa doeu.

- Tá, mas... – começo, mas ele me corta.

- Não entendo você, Jacobus. Se recusa tanto a servir ao exercito alemão, mas se morde de curiosidade em relação a algumas questões. Então, pode por favor me explicar onde está o sentido nisso?

Baixo a cabeça e sento-me no chão, pegando novamente o exemplar surrado de Minha Luta. Não digo nada. Realmente não há sentido nisso, em mim, mas é a verdade. Sou curioso, ponto final.

Alguns minutos se passam e a voz grossa e alta de meu pai me assusta, e eu quase tenho um ataque cardíaco quando ele fala comigo novamente e sem prévio aviso.

- Hitler era canhoto, tinha fotofobia, odiava cigarros, era abstêmio e dizia-se também que era vegetariano. Não são segredos necessariamente, mas é tudo o que eu sei. Está satisfeito?

Obviamente que não. Não, isso não era um segredo, e sim, eu já sabia disso, mas não é o que digo a ele. Simplesmente sorriso e concordo com a cabeça. Mas há mais coisas que pipocam em minha cabeça, e que eu não quero ter de perguntar em voz alta. Você também esconde algum segredo? Por que você anda tão nervoso? Qual a porcentagem de chances que temos de perder para o Oponente? Por que você permitiu que Victoria fosse morta?

No dia seguinte, na escola, tenho prova. A coisa toda é muito fácil, considerando que não estudei uma vez sequer para a prova. Quando termino a prova, saio da sala rapidamente, para escapar do olhar suplicante de Niclauss, e dos olhares misteriosos e cheios de mistérios de Wilhelm e Noam.

Do lado de fora, Sophitia me espera. Até mesmo seu olhar parece misterioso. Francamente, se ela me disser que tem um segredo para me contar, eu mato alguém.

- Jacob – cumprimenta ela.

- Algum problema? – pergunto.

- Tem... uma coisa que eu tenho que te contar... mas não sei se você vai querer ouvir...

- Oh, não, você também não...

- Eu também não o quê?

- Bem, desde, o que, mês passado, várias pessoas se aproximam de mim e me dizem que têm um segredo para me contar, mas que não vão me contar, por vários motivos diferentes. Então me diga, qual seu motivo para NÃO me contar?

- Você é filho de um tenente do exército. Pode ser um perigo para... – ela se interrompe. – Quase falei demais.

Estou completamente irritado. Se ela não fosse uma garota, eu a socaria. Mas, infelizmente é. Então, me restrinjo a sair pisando duro. Ela me alcança e segura meu braço.

- Já ouviu falar na Sublevação?

- Na o quê? – pergunto. Nunca, jamais, ouvi um nome tão estranho. Entretanto, minha mente me lembra de um aula de gramática anos atrás, quando uma professora fez menção a essa palavra. Não consigo me decidir, então, se esta palavra significa algo negativo ou positivo, pelo menos para mim.

- Imaginava que não... – diz ela, e sai caminhando.

- Então, vão me contar ou não seus malditos segredos ou não? – pergunto, quando Wilhelm, Noam e Niclauss chegam em minha casa. Os convidei justamente para isso, mas disfarcei dizendo que queria estudar para as próximas provas.

- Ei, calma. Relaxa – me diz Niclauss, passando o braço por cima de meu ombro.

- Não, não vou relaxar – digo, e tiro o braço dele de cima de mim. – Desembuchem de uma vez, e aí quem sabe eu relaxe.

Os três se entreolham. De expressões leves e despreocupadas, seus rostos se tornam máscaras tensas e sérias.

- Bem, acho que está mais do que na hora que você saiba – diz Noam, e sua voz retumba dentro de meus ouvidos. Não gosto do tom sério que ele está usando. Me faz pensar que é algo ainda mais sério do que o que deveria ser.

- Então falem – digo.

- É melhor se sentar – diz Niclauss, com um sorriso zombeteiro no rosto, e cruza os braços sobre o peito.

- Garanto que não – digo. Estou começando a ficar irritado novamente. – Anda, falem logo, porque...

- Eu e o Noam estamos namorando – diz Wilhelm, tão rápido e convicto que posso que ele não disse. Fico boquiaberto. Eu não ouvi isso, eu não ouvi isso...

- Vo... Vo... Vo... – é tudo o que consigo balbuciar. Em questão de segundos, Niclauss está dando risadinhas curtas.

- É verdade... – diz Noam, e olha para longe.

Mas não pode ser verdade. Porque se for, isso significa que eles correm perigo, e que, cedo ou tarde, serão pegos, e executados. Duas palavras socam minha cabeça por dentro. Vocês não...

Não estou, sinceramente, surpreso com isso. Não estou surpreso que algo assim tenha acontecido, nem revoltado, irritado ou triste com isso. Estou triste com a possibilidade de perder mais duas pessoas que eu amo...

Passo o resto do dia digerindo a nova informação, parabenizando o novo casal, tentando não chorar com a perspectiva de perda, e estudando para a prova de história. No fim do dia, Wilhelm e Noam vão para casa, mas Niclauss fica. Ele vai dormir em minha casa hoje.

- Então, como você está aceitando? – pergunta ele, e me abraça pelos ombros.

- Eu não tenho o que aceitar. Só precisava saber – digo, e é verdade. Enquanto subimos as escadas que dão acesso ao segundo andar, onde fica localizado meu quarto, ele segura meu antebraço.

- Você está bem? – pergunta. Não sei se estou. Tudo tem acontecido tão rápido... O fim do ano escolar, a morte precipitada de Victoria, a descoberta do Oponente, o real motivo por trás da morte de Victoria, a notícia de que dois de meus melhores amigos namoram... É muita coisa para minha cabeça acompanhar.

Explico isso para Niclauss, ao mesmo tempo em que colocamos roupas de dormir. Só tenho uma cama, então teremos de dormir no mesmo lugar. Olho pela janela. É estranho pensar que um mês atrás eu olharia por esta mesma janela e veria apenas a vista de uma cidade cinzenta e próspera. E é mais estranho pensar que, depois de tudo o que descobri sobre esse lugar, jamais poderei olhar da mesma maneira.

- Mas você é inteligente, e uma pessoa boa. Em algum tempo, isso não será nada – diz ele. Isso é verdade. Sinto que há muito mais para descobrir antes de ficar deprimido. Entretanto, ainda há algo que eu não sei, e que preciso avidamente saber.

- Qual o segredo que você tanto guarda? – pergunto para ele. Niclauss se aproxima de mim, o suficiente para que sua coxa encoste na minha.

- Você quer mesmo saber? – pergunta, sua voz baixa, seu hálito quente.

- Quero – respondo. E há algo em minha cabeça me dizendo que não vou me arrepender de saber disso. Meu coração acelera e minha respiração se torna pesada quando ele se aproxima ainda mais. Seus lábios estão a centímetros dos meus, e sua voz é apenas um sussurro.

- Eu te amo – revela. E seus lábios tocam os meus suavemente.

Continua...

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 13/07/2014
Código do texto: T4880617
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