Cidade de Vidro - Parte 2: Não Me Deixe Ver
Na escola, as coisas parecem mais normais. Claro, duas semanas se passaram, então acho que é mais do que normal que todos tenham perdido o interesse na morte de Victoria. Mas eu não perdi. Claro, também não perguntei nada a meu pai – ele não me responderia, de qualquer maneira. Acabei descobrindo que meu pai não me contará nada relacionado às decisões governamentais de execução depois de ter perguntado a ele novamente sobre quais quebras de regras levam a execução. Ele acabou repetindo o discurso, e me dizendo que isso não era da minha conta.
Decidi, então, que não adiantava insistir. O jeito é viver um dia de cada vez e tentar descobrir essas coisas por conta própria.
Em minha sala, parece que está minando gente. Além do aluno novo que entrou no dia em que perguntei a meu pai pela primeira vez sobre as execuções, mais dois alunos entraram. Um deles na semana passada, e outro nesta semana. Aquele entrou em minha sala há duas semanas se chama Noam, e é judeu. O que entrou na outra semana se chama Wilhelm, e o mais recente se chama Niclauss. Como um bom representante de turma, logo cumprimentei os três, e foi aí que acabei descobrindo que Noam é judeu.
Noam e Wilhelm já se tornaram amigos, e não saem um do lado do outro. Eles dois parecem sociáveis, e conseguem se enturmar sozinhos, sem minha ajuda. Mas Niclauss precisa de uma ajudazinha, noto.
- Bom dia, Niclauss – começo. Ele sorri para mim. Há algo em seu sorriso que o faz parecer sereno, e que me deixa feliz. Noto, neste momento, que seu cabelo esta bagunçado, e que é enorme e cai sobre sua testa. Um desejo súbito de agarrar seu cabelo me agarra, mas me contenho. É engraçado pensar nisso, e chega a ser risível.
- Bom dia, Jacob. – ele me chama pelo meu apelido. Isso me faz sentir confortável. Involuntariamente, começo a rir. – Do que está rindo? – pergunta ele. Na verdade, não sei. Não tenho ideia. Só consigo responder:
- Não é de você, juro – digo, mas continuo rindo. Sou obrigado a me sentar, porque não consigo conciliar ficar de pé e respirar. Alguns momentos depois, Niclauss começa a rir comigo. Sem um por que, sem motivo.
- Que tal isso – sugere ele, quando finalmente consigo parar de rir. – depois da aula você me conta por que estava rindo, e eu te conto um segredo.
Tenho que dizer que é uma oferta tentadora, mas não sei se posso. Depois da escola, tenho de ir para o local de trabalho do meu pai. Ele quer que eu faça um serviço para ele, e eu não gosto de pensar em desobedecer ele. Então...
- Desculpe... Não vai dar – lamento. Eu realmente queria...
- Tudo bem – diz ele. Ele continua sorrindo.
- Vai me contar o segredo? – peço.
- Não – diz ele, e me dá um sorriso maroto. Claro que não ia contar.
Depois da aula, a perspectiva do segredo de Niclauss me queima e devora meu cérebro. Eu preciso saber o que ele tem para me contar, mas não quero me atrasar.
Consigo alcançar Niclauss antes que ele saia da sala.
- Cinco minutos – digo, e ele não pergunta para que. Ele sabe bem.
- Então, vai me contar? – pergunto. Quero saber o quanto antes.
- Não vou contar – responde ele.
- Como não?! – Estou sobressaltado. Não acredito que vou me atrasar e ainda não vou conseguir nada. O pior de tudo é a máscara séria que Niclauss adotou. Ele não está brincando. – Posso perguntar por que não?!
- Não quero trazer problemas para você – diz ele. – Eu tenho que ter certeza antes.
- Certeza de quê? – quero saber. Mas ele só balança a cabeça negativamente.
- Perdi meu tempo – digo, e começo a me afastar, completamente irritado. Niclauss segura meu braço.
- Vai me contar por que estava rindo? - pergunta ele, e sorri para mim. Isso me faz perder a cabeça.
- Não – respondo, e livro-me de seu toque.
O escritório de meu pai está uma bagunça. Livros e volumes estão espalhados sobre sua mesa, alguns no chão, além de mapas e papéis que não sei o que são. Meu pai está eufórico, completamente agitado.
- Pai, o que está havendo? – pergunto, interessado.
- Eu tenho que arrumar essas coisas – diz ele, olhando em uma das gavetas, procurando por sabe-se lá o que.
- E qual o problema com isso?
- Tenho que sair para supervisionar o treinamento dos recrutas em cinco minutos.
- Então, você quer que eu guarde tudo para você?
- Quero que catalogue e arrume tudo. – Ele olha para mim, e para de procurar na gaveta. Estendo para ele o emblema que estava encima da escrivaninha. Ele pega da minha mão e o prende no peito da camisa. – Pode fazer isso por mim?
- Claro, papai.
Esta é a melhor oportunidade de conseguir as informações que eu quero. Eu não terei outra oportunidade como essa, então tenho que aproveitá-la o máximo que puder.
Entre os montes de arquivos de meu pai, encontro muito livros que falam sobre leis, mas nenhum é direto o suficiente, então tenho que descartar vários, ou perderei tempo. Finalmente, encontro uma cópia da legislação do país – um livro grosso e pesado, cheio de números e parágrafos. São coisas demais para ver, e não há um índice claro que indique o que procuro. Tenho de me contentar com procurar página por página o que quero.
Mas quando finalmente acho, é tarde. Meu pai já deve estar chegando, e eu mal comecei a catalogar.
Corro contra o tempo, tentando criar uma padrão simples o suficiente para colocar os livros em ordem e me dar tempo de estudar as leis. Sei que o que estou fazendo é errado, mas também sei que meu pai não reclamar se eu encontrar o que procuro. Ele com certeza vai achar que eu estou começando a me interessar pela constituição de nosso país, mas também vai dar um jeito de não me deixar chegar mais perto dos livros.
Depois de arrumar metade dos livros e volumes e mapas na estante, volto ao livro de leis. Uma delas – uma das primeiras – diz que a população deve seguir vigorosamente e a risca as leis, sem jamais descumprir alguma delas. Mas essa é uma ordem ridícula. Como podemos obedecer á eles, se eles mal nos dizem o que temos de fazer?
Entre classificações e olhadas no livro, encontro algo interessante;
Lei Nº 2.1: Está proibida qualquer forma de expressão artística que possa incitar ou, ao menos, mencionar rebelião. A forma de arte será examinada diretamente pelo governo, antes de poder ser liberada para exibição. Se houver qualquer indício de um possível pensamento rebelde, o (s) autor (es) da peça devem ser executados imediatamente. Se forem encontrados, sob investigação ou por acaso, expressões de artes, tendo elas conotações rebeldes ou não, e não houverem sido elas vistoriadas pelo governo, ou seja, se houverem sido escondidas dos olhos de seus maiorias, o (s) autor (es) da peça devem ser executados imediatamente.
Isso me deixa interessado e assustado. Poderia Victoria estar desenvolvendo uma pensamento rebelde?
Folheio mais um pouco, e acabo esbarrando em mais uma lei, uma das outras que leva á execução. Essa me apavora. Isso é errado, não é: Matar alguém por este motivo...
Lei Nº 2.2: Está proibido o homossexualismo. Qualquer individuo que for pego tendo qualquer tipo de relação homossexual (qualquer forma dela), deve ser executado imediatamente. Há exceções para investigação.
***
- Parabéns, garoto. Olha só, está tudo perfeito. – Meu pai segura uma xícara, e o cheio do chá de hortelã enche o ambiente. Agora esta sala cheira a hortelã, poeira e suor. Dou um sorrisinho tímido para ele, mas olho em direção á janela. Voltou a chover lá fora. E eu quero ir para casa, mas é bem capaz de que ele me leve para casa.
Acabou que descobri todos os motivos pelos quais alguém deve ser executado. Não fazem sentido para mim, mas deve ser verdade.
• Qualquer forma de arte não autorizada e/ou que incite a rebelião.
• Homossexualismo
• Traição Nacional
• Assassinato
- Jacobus, quero que conheça Kornelius – diz meu pai. Estamos em sua malcheirosa e escura sala. – Kornelius é o mais novo Primeiro-tenente da corporação. Ele é um dos soldados que alcançou o posto em que atua mais rápido da década.
Kornelius estende a mão para mim. Aperto sua mão e olho para meu pai. Ele aquiesce coma cabeça. Posso considerar Kornelius um exemplo de alemão, também. Seu cabelo é curto e loiro, e sua pele é dourado-clara. Seus olhos são verdes, e seu rosto é duro e magro. Com certeza foi impressão minha, mas quando toquei sua mão, senti uma corrente elétrica mais forte, como uma força maior e mais perversa. Como eu disse, isso obviamente é impressão minha.
Será mesmo?
Continua...