Sentado ao Lado

Era primavera de 1999, Rude acorda às 5 horas todos os dias para trabalhar, trabalha em um escritório de contabilidade na Rua Cardeal Arco Verde em São Paulo – Capital, sua vida funciona como um relógio, o despertador o acorda, senta na cama, coça seus olhos por alguns instantes encara a janela ainda escura e com uma coragem quase inexistente entra no banheiro e toma seu banho. Sua Roupa esta sempre alinhada, camisa bem passada por sua mãe e terno discreto como manda o patrão. Ele não entende porque tem que usar terno, não é advogado nem contador, é um simples assistente contábil, mas conhece muito bem aquele ditado "quem pode manda, e quem tem juízo obedece", depois do banho tomado, cabelo penteado e roupa no corpo, ele vai par cozinha tomar seu café, dar seu beijo matinal em sua mãe Cleuza e parte para mais um dia de jornada. Às 6 horas pega seu ônibus e segue para estação de trem de Mogi das Cruzes, o trem ainda com muitos espaços para se sentar remete a uma falsa ilusão de viagem confortável e tranquila, pois Rude sabe que a cada estação mais pessoas tomarão aquele vagão, sentado com pessoas o espremendo contra seu banco, Rude chega a Guaianazes onde faz a primeira baldeação de três e corre como todo mundo no empurra-empurra para tomar seu lugar no trem que vai ate a estação da Luz, onde fara o mesmo ritual de corre-corre para pegar o metrô que será sua penúltima condução ate chegar à estação de Pinheiros que fica próxima a seu trabalho. Rude já chega cansado para pegar no batente às 8 horas da manhã, esse ritual foi repetido na ida e na volta por quatro anos seguidos até o dia em que Rude na hora de seu almoço, sentado em um balcão de lanchonete, comendo seu PF, olhou para fora e viu duas crianças que apontavam para as pessoas que passavam do outro lado da rua e riam de suas roupas, imitavam o modo agitado e corrido que andava, faziam da brincadeira deles o imitar do cotidiano paulista, Rude achou graça e parou para refletir,

-quantas pessoas passam por mim todos os dias neste percurso que faço? quantas vezes eu notei ou fui notado, quantas vidas se misturam e não se envolvem ou se compartilham nos vagões de trem ou metrô que pego todo santo dia? Que coisa mais insensível

Rude então resolveu

- amanhã vou começar a reparar as pessoas que compartilham da minha viagem diária.

No dia seguinte rude acordou mais animado, sua mãe Cleusa até estranhou o modo feliz que ele acordara.

- O que aconteceu Rude – falou ela.

- estou perdendo tempos e momentos preciosos da minha vida, preciso mudar isso.

Foi então que Rude olhou para sua mãe, e percebeu que ela esta cansada, muito tempo se passara depois que seu pai nos deixou. Não tinha reparado que o tempo havia passado no semblante de sua mãe, rude então levantou, abraçou sua mãe, que sem entender nada apenas retribuiu o gesto, rude retirou sua carteira do bolso e deu dinheiro a sua mãe, pediu que ela fosse passear, ao salão de beleza e ao cinema ver um filme (coisa que ela adorava fazer, mas com a morte do marido perdeu o interesse e se dedicou a casa e ao filho). Rude resolveu que no primeiro dia ia apenas notar as pessoas.

No ônibus reparou um senhor sentado cochilando sobre sua mochila, uma mulher com sacolas e bolsas, parecia que ia viajar, do seu lado tinha um rapaz de boné e com fones de ouvido ouvindo o que parecia ser Hip-Hop, pois estava bem alto. Na estação de trem o senhor da mochila tomou o mesmo vagão que Rude, se acomodou e voltou ao seu cochilo, Rude ficou de olho nas pessoas que entravam nas estações, na estação de Suzano entrou uma moça com perfil mediano, cabelos longos, caderno nas mãos, usava um suéter cinza com uma camisa branca por baixo que tinha alguma estampa que Rude não conseguiu saber o que era, e calça jeans, a moça entrou e sentou-se ao lado de Rude que a acompanhava com os olhos, a deixou sem graça ao ponto dela soltar um sorriso discreto e abaixar a cabeça, a viagem continuou. Rude olhava para os lados e observava a maioria das pessoas concentradas em algo distante, um ou outro conversava entre si, o aperto era grande.

Na Baldeação de Guaianazes Rude não correu, ficou um instante olhando e viu que em sua maioria eram homens correndo, uma ou outra mulher tentava acompanhar ou era levada como uma onda de pessoas. Rude não conseguiu entrar naquele trem, decidiu esperar o outro com calma, olhou ao lado e notou aquela moça recolhendo os cadernos caídos no chão, correu para ajudar, a moça agradeceu, ainda sem jeito, tímida e envergonhada. Rude perguntou seu nome, era Julia, a moça agradeceu mais uma vez e se afastou. Rude a acompanhou com os olhos, mas percebeu que ela estava um pouco incomodada com a abordagem, então não insistiu. O restante da viagem foi como sua rotina, mas ele seguia com seu plano observando as pessoas. Quando desceu em sua estação de destino, Rude não se sentia tão cansado como de costume, trabalhou melhor, rendeu mais, e até recebeu elogios da atendente que trabalhava com ele.

Em sua casa já a noite Rude estava lembrando-se e como foi o dia, cheio de novidades, e começou a se questionar:

- quantas vezes eu encontrei aquele senhor que cochilava, a senhora das sacolas, a moça de Suzano, muitos outros a quem observei hoje e nunca os notei antes.

Era Sexta e sua curiosidade com o próximo só aumentava, passou o fim de semana pensando, olhando as pessoas na feira de sábado, nas ruas, alguns ate retribuíam o olhar, ganhava sorrisos, estava se sentindo mais leve. No domingo à noite ao separar a roupa do trabalho para segunda refletiu e imaginou se não teriam pessoas que o notavam, então, quis se arrumar melhor, quis estar mais apresentável.

De manhã sua mãe notou um brilho em seu filho e Cleusa com o cabelo cortado, com umas mechas claras parecia outra mulher, a casa estava mais feliz, o dia iria começar mais alegre, Rude se encaminhou para o ponto de ônibus e reparou que aquela senhora das sacolas estava esperando o ônibus no mesmo ponto que Rude e com as mesmas sacolas, Rude então ficou curioso:

- será que ela carrega todos os dias essas sacolas, por quê? Será que ela vai todos os dias comigo e eu nem noto, devem ser doações que ela recebe, parece uma senhora carente.

O ônibus chegou, Rude a ajudou com as sacolas, para surpresa da mulher que sempre encontrava aquele rapaz filho da Cleusa no ponto e ele nunca nem lhe deu bom dia, a mulher sorriu:

- Bom dia Rude, obrigada – ela disse.

Rude então percebeu que a mulher o conhecia, se sentiu envergonhado por não poder retribuir da mesma forma, respondeu com um bom dia tímido e subiram no ônibus, Dona Luzia como era conhecida, viajou sorrindo feliz e para surpresa de Rude aquelas sacolas não eram doações que ela recebia eram doações que ela oferece e leva para creches e abrigos para crianças carentes, se sentiu pequeno, pois aquela mulher mesmo simples e de vida difícil ajuda aos outros mais do que muitos que que poderiam ajudar com maior facilidade. Rude notou que o senhor do cochilo não pegara aquele ônibus neste dia e seguiu sua viagem reparando nas pessoas, mas a espera da estação de Suzano, foi quando Julia entrou, o vagão parecia iluminar, rude se ajeitou e foi ai que notou o trem estava muito cheio, e sem nenhum lugar a moça e seus cadernos iam ter uma viagem desconfortável, Rude acenou, ela sorriu discretamente, ele ofereceu seu lugar a ela, ela recusou , ele insistiu e ela enfim aceitou mas não deu muita conversa até chegarem em Guaianazes, ele segurou seus cadernos para que ela descesse do trem e caminhasse ate a outra plataforma onde iriam começar outra longa jornada ate a estação da Luz, conversaram sobre tudo, e Rude se despediu dela na estação da Luz pois ela iria no sentido contrario pegaria o metrô sentido Tucuruvi.

Neste dia Rude quase não conseguiu se concentrar no serviço, pensou na Julia o dia inteiro, e não via a hora de chegar o outro dia e pegar o trem com ela novamente.

No ia seguinte Júlia percebeu o entusiasmo e proximidade do rapaz e durante a viagem entre Guaianazes e Luz questionou o porquê de só aquele dia resolveu conversar com ela, pois segundo ela, tem mais de um ano que pegam a condução juntos e ele nunca sequer olhou para ela, em um dia inclusive, ela estava com a mão cheia de cadernos e blusa e ele nem se ofereceu para segurar, quanto mais dar o lugar a ela. Rude ficou sem jeito ao perceber o quanto perdera de tempo, mas teve sorte, pois aquela garota de nome Júlia reparara nele todos os dias durante a viagem de trem, e isso o fez perceber que a felicidade pode estar bem perto, basta se permitir repará-la.

Hoje mais de 10 anos após estes acontecimentos Rude não trabalha mais tão longe nem Mora mais no Jardim Aeroporto 2 em Mogi das Cruzes, hoje ele vive em Suzano, tem seu próprio negócio, um lava rápido familiar, simples e feliz, onde passa o tempo com seus dois filhos e sua esposa Julia, a quem só encontrou por aprender a olhar quem esta sentado ao lado.