A PRINCESA DAS MANGAS

A PRINCESA DAS MANGAS

Amava aqueles olhos agateados, verdes, azuis – nunca lembrava – aquela boca molhada e a expressão de ingênua zombaria. O ligeiro desalinho não maculava a moldura do cabelo claro que, de fino e solto, vez por outra, disfarçava o brilho da testa. Um vestido ralo, cobrindo o pouco que havia no corpo de quatorze ou quinze anos, talvez menos.

Na missa, voltava sempre o olhar para ela que, percebendo o interesse, lançava o mesmo sorriso de gata, dissimulado, irônico.

De férias com os parentes, ansiava pelo dia e hora em que a tia o mandava comprar mangas na casa da menina. Recebia as frutas e entregava o dinheiro com mãos trêmulas, nervosas, o suor descendo pela cara magra e a espinha gelada.

Atravessou muitos anos nessa veneração tímida e louca, de lhe tirar o sono ou fazer sonhar com castos e medrosos beijos, sequer tentados. O onírico desejo, quase adoração, era incapaz de um gesto prático em direção à deusa.

Mas o tempo dos ardores juvenis passou, sublimando o anelo do amor tímido e impossível. Os anos correram céleres e apagaram as marcas daquela e de tantas outras paixões. Mas o destino fez das suas, e por caprichosas mãos o conduziu ao encontro da realidade que só logramos enxergar quando a fantasia e os sonhos infantis nos abandonam, à mercê de cruas e duras verdades.

Em um ponto de ônibus, numa hora qualquer, num dia qualquer, surpreso, a reconheceu. A memória de pronto tentou recompor o quadro há muito tempo desbotado. Era ela, sim. Nem gata, nem zombeteira, nem irônica. Sem qualquer traço do frescor e adolescente ousadia do tempo das mangas. Os olhos, que nunca soube se verdes ou azuis, estavam amarelados. Nas mãos, outrora suaves, dedos rugosos exibiam unhas enegrecidas por um esmalte vulgar. Os pés grosseiros e mal cuidados arrastavam pobres sandálias de saltos desgastados. Nos lábios, onde em sonhos e poluções noturnas depositou improváveis beijos, desfazia-se pesada carga de batom vermelho vivo, não retocado. Olhares cruzados, cumprimentou-a mas, prudente, não se revelou. E por instantes, aquela boca molhada e carmesim, exibiu o simulacro de sorriso, por onde se entreviam os frouxos dentes da prótese barata.

Intrigante alívio o assaltou quando a viu, aos gritos, subir e desaparecer em meio aos passageiros do ônibus lotado que esperava. E acenou-lhe um adeus para sempre.

O sono não demorou a chegar naquela noite. E, como há muito não acontecia, dormiu tranquilo e repousado. Via-se no caminho da lagoa, desviando os buracos e as urtigas e de novo sentiu o prazer de pescar as piabinhas e os pitus que infestavam a água rasa. Chupava pitanga, umbu e cheirava as folhas de eucalipto que na folia do vento se derramavam por ruas e calçadas. Um delírio que o fazia desfrutar de todas as delícias que povoaram o seu mundo infantil. A esposa flagrou doce e iluminado sorriso no sono do marido. Um suspiro o denunciou.

Também sonhava com a princesa das mangas.

F I M