Eulogia

(Em meio a uma floresta de pinheiros se encontram quatro pessoas e um padre, reunidos ao redor de um caixão cor-de-vinho, onde repousa a foto de uma linda garota ruiva, sorridente, colocada sobre o tampo. O céu está nublado e uma chuva fraca pinga sobre os presentes.)

PADRE: Nos reunimos neste local para dizer nossas últimas palavras a esta jovem moça que foi levada para junto do Senhor. E como respondeu Jesus Cristo ao ser perguntado por Judas ''Quantas vezes alguém pode morrer?'': ''Muitas vezes, meu amigo. Porém uma pessoa só precisa morrer uma única vez. Uma vez basta.''

Morremos de vez em quando. A partir do momento que mudamos de ideia sobre algo, alguém, deixamos de ser quem éramos. Morremos e nascemos diversas vezes. Em algum ponto do tempo podemos mudar tanto que nos tornamos uma mera sombra do que costumávamos ser. E quem melhor sabe disso e que mais sofrem são os que mais nos amam.

Passo a palavra agora para este garoto, que era namorado desta moça, que entende tudo isso melhor do que qualquer outra pessoa.

(De sobretudo longo e também longos cabelos pretos, um pouco molhados pela chuva fria que acaba por disfarçar as lágrimas nos olhos, se aproxima o garoto do caixão.)

GAROTO: Quando olhamos para o passado parece que vislumbramos um paraíso. Tudo parece bom e parece alegre e parece muito melhor do que o presente. Sei que isso não é verdade. Nós brigamos diversas vezes, nos desentendemos em inúmeras situações, passamos por algumas crises e cometemos erros demais. Mas ao olhar para tudo isso agora, vejo que não importa. Essas coisas ruins não conseguem competir com todos os bons momentos que vivemos. Por isso que quando lembro do passado eu sempre abro um sorriso.

(O garoto sorri. As lagrimas passando pelos cantos da boca. As mãos agarram forte o tampo do caixão rubi.)

GAROTO: Não estou feliz em te ver partir. Sempre quero mais um momento, um minuto que seja, só pra te ouvir falar. Tuas gargalhadas, teu gosto musical e sentir teus dedos nos meus cabelos.

Tudo isso foi ótimo. Me destes de presente um passado cheio de recordações felizes e boas.

(A voz do garoto fraqueja, desafinando até parecer um mero sussurro. Um longo suspiro. A chuva pára.)

GAROTO: Te deixo ir agora. Mas sempre estaremos juntos, felizes e sorridentes em minha memória. Descanse em paz. Eu te amo.

(O padre faz o sinal da cruz, retira o retrato de cima do caixão e sinaliza ao coveiro que comece o sepultamento.)

PESSOA 1: Descanse em paz, amiga.

PESSOA 2: Descanse em paz, filha.

PESSOA 3: Descanse em paz, irmãzinha.

(Conforme as pás de terra cobrem o caixão com a bela jovem, que ainda encara o céu de olhos fechados, pelo vidro em frente ao seu rosto, a chuva volta e fica mais forte. Os presentes se retiram, exceto o garoto.)

GAROTO: Prometi ficar contigo até o fim, não prometi?

(Quando a última pá de terra cai sobre o túmulo, sepultando de vez aquela vida que agora é abraçada pela terra fria e úmida, o garoto retira o sobretudo do seu corpo e o coloca sobre a lápide, exibindo um enorme par de asas negras, e alçando voo some em meio à chuva forte que despenca. O vento arranca o sobretudo de cima da lápide, revelando as palavras talhadas na pedra: 'Aqui jaz um sonho'.)