234-ROMANCE JUVENIL-Romance de amor

— Vamos dançar? — Ele perguntou.

Ela nada disse, mas o sorriso nos lábios, e, mais, o olhar de brilho intenso, enquanto se aproximava do rapaz, era a resposta que ele queria ouvir. Descansando gentilmente sua mão direita na cintura fina da moça, Gabriel viveu plenamente o encanto do momento. Unidos no abraço gentil, ensaiaram timidamente os primeiros passos da valsa e logo rodopiaram pelo salão feericamente iluminado.

Sônia vivia um sonho. A festa de seus quinze anos, tão esperada, acontecia como ela sonhara. O pai fora liberal e não impôs limites aos gastos. A mãe a satisfez em todos os caprichos. Sônia não era vaidosa, mas aquela comemoração era um marco, uma porta que se abria tanto na sociedade como também para sua vida. A “Festa das Debutantes”, promovida todos os anos pela Matilde Alvarado, esposa do presidente Clube Social, era o evento máximo para as adolescentes. Naquele ano, houvera um capricho especial da diretoria do Clube na realização da festa.

Era a quarta filha do casal, e, sendo a caçula, merecia atenções e privilégios que as irmãs mais velhas não tiveram. O regime na família do capitão Ezequias Marcondes era rígido e conservador. Afeito à ordem e à disciplina do quartel, o militar comandava a família como seguimento de sua vida profissional. Rigoroso com a esposa e com as filhas, era, ao mesmo tempo, amoroso e gentil. Fazia questão de que as filhas freqüentassem o melhor colégio da cidade, e acompanhava de perto a sua educação. A mãe compreendia o marido, e, mais do que mãe, era a companheira das filhas.

Ao regressar da frente de guerra na Europa, o Capitão Marcondes voltou um tanto diferente. Um pouco mais humano e compreensivo. Deixou de ser tão rigoroso, tornou-se mais tolerante, e a vida em família corria tranqüilamente. As filhas já moças, educadas nos princípios estabelecidos, não davam preocupações. Alteia, a mais velha, estava noiva e de casamento marcado. Neuza tinha um namorado aprovado pelos pais. Linda se dedicava com afinco aos estudos e a música: queria ser pianista, e nada mais lhe interessava.

Sônia era estudiosa, sempre obteve as melhores notas e os primeiros lugares em sua classe. Tinha seus flertes. Nada de comprometedor. Mesmo porque tanto o pai quanto a mãe só permitiam que as filhas namorassem depois de completados os quinze anos. Muito delicada, magra e miúda, a moreninha era travessa em casa. Aprontava inocentes brincadeiras com as irmãs, com a mãe e tinha liberdades até com o pai. Muito religiosa (como, aliás, todas as outras), participava das “Filhas de Maria”, congregação paroquial que reunia as melhores moças da sociedade de São Roque da Serra.

— Você dança bem. — O rapaz, tímido, atreveu-se a um elogio inicial.

— Não gosto de dançar no começo do baile. Todo mundo fica reparando. — Sõnia está constrangida, pois ela e o rapaz são os únicos no salão.

— Não tem importância. Feche os olhos, finja que não está aqui.

Ela sorri. Se fechar os olhos, erro os passos. Outros pares começam a movimentar-se. Está feliz. É a festa com a qual vinha sonhando há tempos. A sua apresentação na sociedade - conforme diziam as amigas. Mais do que isso, era como uma iniciação, um ritual de passagem, o começo de nova etapa da sua vida.

Tendo terminado o curso ginasial naquele mesmo ano, chegava a hora de grande decisão: que curso seguir, qual a carreira que tomaria. Sonia via aquela data como uma esquina, a qual, dobrada, determinaria definitivamente os rumos de toda sua vida. Mas (e isto era, na realidade, o mais importante) com os quinze anos chegava a autorização do pai para namorar.

Doces tempos de ilusões, de sonhos e devaneios. Ela, igual a todas as garotas de sua idade, tinha seus anseios de namorar, de noivar e de se casar. Era nisso que todas as jovens pensavam. Sônia não se sentia diferente. Se o namoro não era permitido, era comum o flerte, a troca de olhares rápidos com os rapazes, nos passeios pela praça, nas sessões de cinema e à saída da missa dominical.

Sônia vira Gabriel pela primeira vez há apenas uma semana. Foi ao fazer a matrícula na Escola de Datilografia. Ele também estava se registrando.

— Ainda temos duas vagas para as aulas das oito da manhã. — A secretária do curso procurava colocar os futuros alunos nos horários que preferissem. — Por coincidência, vocês vão freqüentar a mesma classe.

Sônia sorriu para o rapaz. Notou o brilho no olhar de Gabriel, que enrubesceu. Muito loiro, de pele clara, e sardento, ele nada disse. Passou a mão direita pelos cabelos, tentando ajeitá-los, um gesto que revelava emoção e timidez.

— Tenho de ir trabalhar. Se me demoro, chego atrasado. — Saiu rápido, evidentemente acanhado com a presença da linda garota da qual iria ser colega.

Sônia jamais poderia pensar que justamente aquele garoto, antes desengonçado e tímido, agora elegante no seu terno de casimira azul marinho, gravata presa com alfinete dourado, os cabelos assentados com a ajuda de brilhantina, seria o primeiro convidá-la para a dança inicial.

Gostou de vê-lo assim, na estica, elegante até, apesar de sua pouca estatura: era da mesma altura que ela. E quando a convidou para dançar, sentiu um arrepio, uma sensação tão gostosa, como nunca sentira antes.

Durante as aulas de datilografia, começou uma amizade entre os dois.. Ela chegava afogueada, os cabelos revoltos, após pedalar de sua casa à escola. Deixava a bicicleta ali no pátio, e enquanto esperavam a abertura da sala, mantinha uma conversa circunstancial e cheia de silêncios. Ela sabia que o impressionava, mas ele não se adiantava. Era tímido demais.

Dias depois, outra coincidência: Sônia encontrou Gabriel no seu trabalho. O jovem era funcionário do Banco onde o pai mantinha sua conta. Pois não é que, ao acompanhar o pai em uma visita ao gerente, lá vem o Gabriel, atendendo ao chamado da campainha?

— Gabriel, sirva-nos o café.

Quando o garoto entrou e viu o pai e filha, novamente ficou rubro, como acontecia em todos os momentos de surpresa, vergonha ou temor. Sonia não sabia da sua função de mero serviçal na agência bancária, nem por isso deixou de cumprimentá-lo.

— Oi, Gabriel.

— Oi, Sônia. Bom dia, Capitão.

— Uai, vocês se conhecem?

— Somos colegas na escola de datilografia.

— Ah, bom.

Gabriel serviu o café e sumiu-se da sala do gerente.

As coincidências não cessaram. Três meses após, já era o mês de fevereiro de 50, eis nova surpresa para Sônia e Gabriel: ambos estavam matriculados na mesma classe da Escola Comercial, de curso noturno. No primeiro intervalo, Sônia conversava com duas colegas, antigas companheiras do ginásio, quando Gabriel chegou, sempre corado pela emoção.

— Oi, Sônia.

— Oi, Gabriel.

— Que coincidência, hein? A gente vive fazendo os mesmos cursos...

— Pois é. Não sabia que você tinha se matriculado aqui.

— Nem eu sabia que a gente ia ser colega de novo.

O convívio na escola aproximou os dois. Mas tudo não passava de amizade. Gabriel era tímido demais e Sônia já tinha alguns flertes. Não passou muito tempo, ela estava namorando Luiz Carlos.

Ela não se incomodou, a princípio, com as inúmeras vezes em que Gabriel a procurava: ora para pedir explicação para alguma aula que não entendera,outra para emprestar-lhe um livro; diversas vezes ia à sua casa para entregar correspondência do banco ao seu pai, e sempre achava um jeito de encontrá-la. Não passou muito tempo, desconfiou que Gabriel estava querendo ser mais do que amigo ou colega de classe. Mas se fez de desentendida, afinal estava namorando firme o Luiz Carlos. Até que um dia, o namorado chegou justamente numa daquelas vezes em que Gabriel entregava um aviso destinado ao Capitão. Conversavam animadamente à porta da casa da moça. Luiz Carlos não gostou de Gabriel e o incidente terminou num aborrecimento para Sõnia, que ficou sem o namorado.

A mãe, compreensiva, punha panos quentes na situação:

— Não fica triste, não, querida. Esses namoros são assim mesmo. Agora, com certeza, o Gabriel vai querer te namorar. Espera só pra você ver.

Mas, que nada! Gabriel continuou com suas artimanhas, não bastava ver Sônia todas as noites na Escola, precisava vê-la também na sua casa e até no escritório de contabilidade, onde a moça começara a trabalhar.

Os três anos do curso comercial passaram como um pé-de-vento. Ela desabrochou, transformando-se em linda moça, estudante de vida, alegre, comunicativa. De simples ajudante, tornara-se chefe da “Contabilidade Santos”. Cargo de confiança. Gabriel também “subiu na vida”. De servente passou a funcionário, com salário aumentado.

Nos anos em que conviveram como colegas, a amizade entre os dois aumentou. Era evidente que Gabriel gostava de Sônia, mas não se atrevia a se declarar. Mesmo porque a moça, linda e afável, era assediada constantemente e manteve seus namoros.

Terminado o curso comercial, Gabriel sente a ausência da ex-colega. As noites se tornam vazias e monótonas, não tem graça ficar na praça em conversa fiada com os amigos, nem aprecia mais o jogo de sinuca no salão de bilhar.

Encontra um meio de ver a jovem: no final do se trabalho no banco, vai esperá-la à saída do escritório. Acompanha-a até sua casa. Isto acontece com freqüência e agora tanto ela quanto ele têm certeza de que não se trata mais de simples amizade. Enfim, numa fria tarde de abril, as luzes dos postes brilhando no crepúsculo prematuro, ele se declara e pede permissão para namorá-la.

Sônia não responde na hora, faz um jeito de quem vai pensar, mas se ele pudesse adivinhar-lhe o pensamento, teria a sua reposta. Ela não diz, mas suspira, como que aliviada — Até que enfim! Pensava que ia ficar solteirona esperando esse pedido.

Sucede o namoro, tudo muito dentro dos costumes e usos da época. Sônia apenas consente que ele lhe pegue na mão. Abraços e beijos, nem pensar. A educação recebida em casa e no colégio e as proibições, emanadas da religião, fazem do namoro apenas como que uma amizade com certo comprometimento.

Gabriel quer estudar, vai ser dentista e, para tanto, precisa sair de São Roque. Escolhe o Rio, onde as faculdades são mais acessíveis. Do banco obtém a transferência com facilidade. Só não foi fácil convencer Sônia (e os pais) de que poderão manter o namoro apesar da distância. .

Na visita de despedida à família, Sônia está triste. Reunidos na grande sala de estar da casa do Capitão, a conversa não flui.

— Vocês vão continuar o namoro? — Pergunta o capitão

Gabriel sente-se quase que ameaçado pela pergunta. Todos sabem, e ele, mais do que ninguém, das dificuldades que irá enfrentar, das mudanças pelas quais passará, e, principalmente, das tentações que o rondarão na Capital Federal.

— Sim, claro! Bem... quer dizer... se Sônia quiser.

— Será que vai dar certo?

— Vamos namorar trocando cartas. — Ela explica, sem muita convicção do que está exprimindo. — Já combinamos: uma carta por semana.

Na hora do embarque, Sônia esconde sua preocupação. Mantém um sorriso sem graça nos lábios entreabertos. Os olhos brilham com lágrimas iminentes. Quando ele toma sua mão e a beija prometendo fidelidade, ela responde:

— Haja o que houver, sempre serei sua namorada.

Em seguida, Gabriel, no vagão de passageiros, debruçado sobre a janela, o trem já em movimento, acena para ela, enviando-lhe um beijo nas pontas dos dedos.

Sônia levanta a mão, corresponde ao gesto do namorado. Morde o lábio inferior, na tentativa de sufocar as lágrimas. Inutilmente. Enquanto desaparece a imagem borrada indistinta e cada vez mais distante do namorado e do trem, volta-lhe o pensamento que não quer lhe abandonar:

Se era pra terminar assim, por que começamos este namoro?

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 23 DE JULHO DE 2003

CONTO # 234 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/06/2014
Código do texto: T4846201
Classificação de conteúdo: seguro