O DONO DO GADO
A tarde vai morrendo mansamente, abrindo espaço para as estrelas.
Diante da janela do seu quarto, Felipe observa tudo o que se passa em sua fazenda.
Homem de muitas posses, o seu gado perde-se de vista, como um mar esbranquiçado, onde aqui e ali vemos tonalidades diferentes.
O seu rebanho fenomenal, bem tratado, campeão em muitas modalidades da pecuária, enche Felipe de orgulho, com tudo que conseguiu e, corresponde apenas uma parte de sua grande fortuna.
Apesar de justo e correto, é um homem de poucas palavras e poucos amigos. Costuma relacionar-se apenas com pessoas que tenham os mesmos interesses e com os quais possa fazer negócios. Negócios, sempre eles, são os seus reais companheiros.
Suas viagens são sempre curtas e certeiras, pois sabe o que quer e aonde ir. Suas companhias femininas pensam da mesma forma. São mulheres belas, ricas e sem interesse em romance, apenas desejam sexo seguro e boa companhia nos jantares e boates da moda.
Os seus funcionários são os melhores e nada podem queixar-se do patrão, pois recebem os maiores salários da região e têm toda assistência necessária. Felipe faz isso não por bondade ou solidariedade, mas simplesmente por achar que pessoas bem tratadas e felizes não perturbam e trabalham com responsabilidade, resolvendo os problemas sem incomodá-lo.
Felipe está longe de ser um rico ocioso. Trabalha ombro a ombro com sua equipe, como um peão qualquer, apenas não aceita conversas particulares com nenhum deles.
Quando ocorre algum nascimento, doença ou morte nas famílias, todas as providências necessárias são tomadas, mas nenhuma aproximação pessoal.
Até mesmo um cumprimento simples como bom dia é difícil de sair de sua boca. Quando as pessoas chegam e dizem bom dia, ele simplesmente curva levemente a cabeça, dando a oportunidade de ouvir qual o problema.
Os funcionários sentem falta dos pais de Felipe, seu Armando e dona Julieta. Um casal alegre, prestativo, sempre preocupado com todos, com suas necessidades. Visitavam a todos e eram visitados constantemente.
Nesse tempo, Felipe vivia fora, estudava e tinha um negócio próprio no campo da Informática. Era um rapaz alegre, prestativo e comunicativo como os pais. Estava noivo de Gracieli e iam casar-se.
Tudo mudou com o acidente que matou o casal. Um motorista alcoolizado os vitimou numa estúpida ultrapassagem e nada pode ser feito.
Com a necessidade de voltar para o interior, o seu grande “amor” negou-se a acompanhá-lo. Assim Felipe viu tudo ruir a sua volta ao mesmo tempo. Gracieli disse que nem por ele moraria no “mato”. Nem sequer pensou no sofrimento que estava causando ao rapaz e muito menos que hoje em dia, as coisas não são mais assim, pois com a tecnologia e o transporte aéreo, nenhuma distância é longa demais. Na realidade o amor não era amor, mas sim, comodismo.
Felipe vendeu a sua firma de Informática e voltou sozinho para a fazenda.
Lá chegando, as pessoas quase não o reconheceram. Ninguém nunca tinha visto um homem tão sério e introspectivo como ele havia se transformado. Nem mesmo sua babá, que agora já é uma idosa, conseguiu arrancar algumas palavras dele. Um abraço e um beijo secos foi o máximo que obteve.
Felipe, após os trâmites fúnebres, atirou-se no trabalho como um louco, parando apenas para comer alguma coisa, quando muito forçado.
A fazenda estava precisando de reformas para produzir mais e o rapaz viu na situação uma válvula de escape para os seus problemas. E ao final de um ano, os milhões deixados pelo pai tinham triplicado.
A falta do amor da noiva foi prejudicial para a alma de Felipe.
Assim transformou-se num ser humano irascível, calado, voltado para si, sem preocupar-se ou não em ferir as pessoas. Apenas tentavam uma segunda vez quem o conhecia há pouco tempo. Aos poucos os antigos amigos foram se afastando por não aguentarem conviver com uma pessoa tão difícil.
Em contrapartida, tudo na fazenda começou a melhorar e crescer visivelmente. Até mesmo um micro-ônibus foi adquirido para levar e trazer os funcionários que moravam no lugarejo próximo. Medida tomada para evitar atrasos e faltas em dias de chuvas. Ninguém sentia necessidade de queixar-se de nada.
Ficou morando na fazenda apenas o pessoal da segurança, pois com um império como aquele somente um reforço poderia cobrir todo o conjunto de terras. As casas construídas para as famílias eram bem retiradas da sede da fazenda, num intuito de evitar o contato com crianças e animais domésticos.
Momentos de carinho Felipe só demonstra com Brutus, o seu cão e Pégasus, o seu cavalo.
Pela manhã, Felipe costuma cavalgar por várias horas, somente acompanhado pelo seu cachorro. Percorre as suas longas terras, parando de vez em quando para falar com algum dos seus funcionários e tomar ciência do que acontece nos negócios.
A fazenda desenvolveu a olhos vistos e as necessidades de adaptação também. Com o aumento do número de famílias, deu-se a precisão de uma escola, que ficasse mais próximo do vilarejo, pois o transporte escolar estava sempre quebrado, dificultando o acesso das crianças ao estudo.
Diante disso, Felipe resolveu reformar um grande galpão, que até um tempo atrás, servia de dormitório para os peões antes da compra do micro-ônibus.
Para evitar que quatro viagens diárias a mais fossem feitas para transportar as crianças, uma escola rural era a ideia mais acertada. E assim foi. Entrando em contato com a Secretaria de Educação Municipal, foi designada uma professora para que a escola pudesse funcionar legalmente.
Felipe colocou mãos à obra imediatamente. Contratou serviços especializados para fazer a reforma e escola ficou belíssima. Os recursos básicos foram adquiridos, esperando somente a pessoa que fosse assumir o cargo para encarregar-se do resto.
Satisfeito com tudo, Felipe resolveu mais problemas do que pudesse haver, para que nada atrapalhasse o andamento dos seus dias. Tudo fazia para não ser incomodado.
Às vezes sentia falta de sua firma e assim começou um plano para informatizar a fazenda, já prevendo o quanto a tecnologia iria facilitar a sua vida e aumentar seu patrimônio.
Iolanda foi uma das últimas professoras a ser chamada pelo concurso. Finalmente depois de todas as formalidades poderia assumir o seu cargo.
A vida não lhe apresentara facilidades. Cedo perdeu os pais e foi criada por uma tia. Mulher amarga, de poucas palavras, não sabia amar. Conhecia apenas as obrigações da vida. Trabalhava duramente para o seu sustento e da sobrinha, que lhe fora imposta pela morte da irmã, que era viúva. Assim aceitou Iolanda com 15 anos e quase nada na mala. Continuaram a viver na mesma casa que tinha sido deixada pelos avós, pois a casa da mãe de Iolanda era alugada. Vendendo os poucos e velhos móveis a mocinha foi morar com a tia.
Desde cedo começou a trabalhar em meio período para ajudar nas despesas e evitar ouvir a tia suspirando, ,melancólica pela casa.
Aos 19 anos terminou o curso de Formação de Professores e conseguiu uma vaga para lecionar numa pequena escola particular. Nada muito grande, mas era melhor que antes.
Após 6 anos de experiência, conseguiu finalmente ser aprovada no concurso promovido pela Prefeitura Municipal.
Nesse tempo, muitas coisas aconteceram, entre elas o falecimento da tia, ficando assim sozinha.
A oportunidade de ir lecionar na fazenda surgiu como um presente de Deus, pois poderia afastar-se por um bom tempo daquela casa que só lhe trazia tristezas.
Após receber o aviso da Secretaria, Iolanda iniciou os procedimentos para sua partida. Alugou a casa para uma prima, que desejava morar só, de forma que teria onde ficar quando quisesse vir para a cidade, nas férias e feriados, e seguiu para sua nova vida.
Chegando à fazenda, Iolanda encantou-se com tudo. A vastidão das terras, o barulho dos animais vindo de longe, a movimentação dos peões por toda parte, e tudo foi observando enquanto era levada pelo mesmo funcionário que a pegara em casa, para uma pequena,mas linda casinha, um pequeno jardim na entrada. Ele disse que deixasse suas malas e o acompanhasse para falar com o patrão.
Rapidamente, Iolanda colocou as malas no quarto e indo ao toalete, fez uma rápida higiene e prendeu os cabelos num gracioso coque.
Em seguida, com um largo sorriso, acompanhou o motorista em direção à sede.
Lá chegando, a moça impressionou-se com a grandiosidade da propriedade, pois do lugarejo de onde vem tudo é pequeno, mesmo as casas das pessoas de melhor situação financeira.
Quando ouviu o carro aproximar-se, Felipe dirigiu-se para a varanda a fim de receber Iolanda apenas para conhecê-la.
Sentados na varanda mesmo, Felipe disse à moça o que era esperado dela na implantação da escola e disse que tudo o que fosse preciso seria providenciado para o funcionamento.
Disse também que o básico já estava lá e que ela poderia marcar o início das aulas para quando estivesse pronta.
Entregando as chaves do prédio, que ficava bem próximo da casa onde ela moraria, despediu-se secamente e nem ao menos um copo com água ofereceu.
Iolanda, sem expressão, nem demonstrou o quanto aquela atitude a havia magoado, pois afinal estava ali para trabalhar.
O motorista que havia ficado a sua espera, deu-lhe um sorriso desarmado e levou a moça de volta para casa.
Lá chegando, ele a instruiu que poderia fazer as refeições na cozinha da fazenda ou se quisesse e quando quisesse, poderia fazê-las em sua própria cozinha, que estava preparada para tal.
A parte destinada a atender os funcionários era destacada da casa grande. Assim Felipe vivia em seu castelo de solidão.
Depois que Iolanda partiu, Felipe ficou pensando nas coisas que ela dissera sobre como a escola iria funcionar sob a direção dela e como poderia beneficiar as crianças que ali viviam.
O moço percebeu que a ideia seria excelente, pois assim as crianças seriam agora responsabilidade dos pais e da professora.
Passado o primeiro bimestre de trabalho, Iolanda estava satisfeita com o desenvolvimento das crianças, que apesar de serem simples, são espertas, inteligentes, pois não adquiriram os efeitos nocivos da cidade grande.
Com farto material externo para trabalhar,desenvolver o gosto pela pesquisa e pela leitura ficou fácil para ela.
Com dois turnos de trabalho, agrupou-os pela idade e iniciou o seu trabalho, sendo os mais velhos pela manhã e os menores à tarde.
Percebeu também que Felipe nunca se aproximou da escola, nem para perguntar se estava tudo bem. Mas Rodrigo, o motorista, ficou como uma espécie de porta-voz entre os dois, levando e trazendo os recados necessários. E assim transcorria a vida.
Pela cabeça de Iolanda passava a procura de uma forma de fazer Felipe participar do seu trabalho, até que ideia lhe ocorreu.
Prepararia uma pequena apresentação teatral com seus alunos, faria uma pequena festa e o convidaria. Resolveu assim na esperança que ele aceitasse.
Para que não levantasse suspeita com as crianças, resolveu também convidar os pais e os outros funcionários da fazenda. Caso Felipe não viesse, somente ela saberia que o tinha convidado e ele se recusado a participar.
Chegou o grande dia e o alarido era grande por parte das crianças ansiosas pela festa.
Finalmente quando todos se sentaram e a apresentação ia começar, Iolanda avistou Felipe, que entrando pelos fundos, sentou-se numa cadeira isolada.
A professora sorrindo por dentro deu início aos festejos.
As crianças cantaram, dançaram e declamaram poesias, arrancando suspiros e lágrimas de todos. Ninguém poderia imaginar tamanho progresso em tão pouco tempo.
Surpreso, Felipe retirou-se antes mesmo do fim das apresentações. Não saberia dizer o que sentia. Sabia apenas que algo o tocara fundo em seu peito e uma necessidade imperiosa de ficar só.
Sem se abalar, Iolanda deu continuidade ao seu projeto, distribuindo com a ajuda das mães as guloseimas que foram preparadas para a criançada.
Todos comeram, beberam, riram e brincaram até quase anoitecer e foram para casa contentes com tudo.
No dia seguinte, as crianças tiveram uma folga, como um presente pelo bom comportamento e pela beleza das apresentações.
Iolanda levantou-s cedo e iria aproveitar para fazer um levantamento do material necessário para comprar. Iria solicitar uns jogos e livros de literatura para os pequenos, bem como material de pintura para todos.
De repente, percebeu que Rodrigo vinha chegando em seu utilitário, parecendo bem nervoso. Quando saltou do carro o moço dirigiu-se a ela, pedindo ajuda, pois Felipe estava caído em seu escritório parecendo desmaiado, e Rodrigo, cauteloso, apenas tocou-lhe a fronte e percebeu-lhe a respiração, normal, mas não o conseguiu acordar.
Pediu-lhe que fizesse companhia enquanto ia buscar o médico do lugarejo, que poderia dizer exatamente o que seria feito.
Quando Iolanda entrou no escritório, tocou a testa de Felipe e achou a temperatura muito elevada, passando assim a informação para Rodrigo, que já telefonara e já estava indo buscar o médico.
Dr. Orlando chegou à fazenda e encontrou Felipe da mesma forma que Rodrigo dissera. Fez os exames de praxe que foram possíveis e disse que nada mais poderia fazer. Teria que remover Felipe imediatamente para uma clínica mais próxima para exames minuciosos.
Assim, o helicóptero da fazenda foi preparado e Felipe levado para uma clínica na capital.
Lá chegando Dr. Orlando entrou em contato com o diretor e a internação foi providenciada e os exames iniciados.
A equipe médica organizada para o atendimento não entendia qual a origem da temperatura tão elevada e o paciente estar adormecido profundamente como se nada tivesse acontecendo.
Às vezes, respirava um pouco mais fundo, mas continuava adormecido.
Passaram três dias sem que houvesse nenhuma novidade. Rodrigo ficou como acompanhante de Felipe e passou a observar as reações do patrão. Não entendia a expressão do seu rosto. Era como se estivesse num mundo especial, muito bom, pois às vezes, esboçava um sorriso, como se estivesse conversando com alguém e gostando do que ouvia. Passando essas impressões para o Dr. Orlando, o mesmo com a equipe passaram a observá-lo também enquanto aguardavam os resultados os exames.
No final daquela semana, Iolanda ofereceu-se para substituir Rodrigo para que o mesmo pudesse descansar um pouco e estar com sua família.
Chegando bem cedo no sábado, Iolanda tomou uma cadeira ao lado do leito do paciente, começando uma leitura de uma história bem suave e procedeu assim todo fim de semana.
Na segunda-feira, o Dr. Orlando resolveu convocar uma junta médica de fora do país, pois conhecia colegas que se dedicavam a pesquisas variadas no campo da Neurologia, pois era o mais propício a ser tratado, tendo em vista que em mais nenhum outro sistema o paciente mostrava alguma alteração. Apenas mostrava uma temperatura mais elevada e aquela aparência de euforia constante.
Com a chegada da nova equipe, novos procedimentos foram adotados, sem que ninguém suspeitasse de algum diagnóstico.
Enquanto isso, em todas as oportunidades, Iolanda continuava com o processo de leituras amenas e relaxantes para Felipe e era visível a todos que nesses momentos a calma e a tranquilidade apossava-se do paciente, inclusive com a baixa da temperatura.
Após 20 dias de internação, era um sábado e Iolanda lá estava no seu ritual de leitura quando reparou um movimento diferente. Quando olhou para Felipe o encontro de olhos abertos olhando-a fixamente.
E o mais imprevisível de tudo, sorrindo!!!
A moça ficou tão espantada que nem reação esboçou. E nesse instante entra Dr. Orlando e assiste o quadro também agradavelmente surpreso.
Quando viu o médico, Felipe sorriu e perguntou surpreso:
_Dr. Orlando, o que faço aqui??? Onde estou???
O médico, cautelosamente, tomou-lhe a pulsação, viu que estava normal e sorridente, respondeu:
_Você está internado nessa clínica, depois de desmaiar e assustar todo mundo. Como você se sente???
O rapaz respondeu surpreso:
_Eu me sinto muito bem!!!Que dia é hoje?
O médico respondeu:
_21 de março.
E ainda surpreso Felipe perguntou:
_21 de março??? Então estive dormindo por vinte dias???
O médico respondeu:
_Sim, por 20 dias. Você se lembra de algo que tenha marcado ou uma dor que tenha sentido?
E o rapaz respondeu:
_Lembro-me apenas de estar perto da escada que leva ao meu quarto, quando senti uma forte dor no peito e um estranho barulho no ouvido e depois nada mais.
E Felipe ficou parado por uns minutos e depois continuou:
_Agora lembro-me também de estar ao lado de vovô e vovó, numa conversa bem agradável em que ríamos muito, como nos meus tempos de criança.
Nos intervalos ouvia uma voz leve e suave que contava lindas e delicadas histórias. Nesse momento olhou bem dentro dos olhos de Iolanda.
Dois dias depois, após ser examinado minuciosamente novamente, Felipe recebeu alta, sem necessidade de um medicamento sequer.
O mais surpreendente ainda foi sua mudança radical de comportamento.
Toda aquela tristeza e amargura desapareceram dando lugar a uma jovialidade encantadora.
Felipe parecia ter nascido novamente. O que aconteceu naqueles vinte dias nunca saberemos. Sabemos sim, que um milagre foi operado em sua vida.
E esse novo homem participa de tudo em sua fazenda, programando muitas mudanças benéficas para todos.
Inclusive é sempre visto passeando pelas bandas da escola, onde com certeza, já está aprendendo a amar novamente.
Regina Madeira
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