Amanhecer - Parte III (Final): Sublime

Acordo com o barulho do vento no lado de fora. Ela ainda está a meu lado. Ainda dorme. Ainda está inconsciente a noite terrível que tive. A janela de seu quarto ainda está aberta, e o sopro do planeta sacode as cortinas e seu cabelo, com a clara intenção de desarrumar nosso pequeno refúgio. Deve ser bem cedo ainda; o sol ainda está para surgir no céu. Mas não posso dizer se o amanhecer será bonito.

Por tantas vezes esta noite minhas mãos voaram até seu rosto, mas lá não tocaram. Inúmeras vezes sussurrei seu nome, sabendo que ela não ela estava dormindo, sabendo que não me ouvia. Pedi a mim mesmo para deixar de ser tão tolo, mas não pude me obedecer; os poucos centímetros que me separam dela causam um estrago incomensurável, de proporções colossais. Não quero sobreviver a mais esta noite e pensar que ela jamais será minha, e pensar que nunca sairei do campo da amizade. Mas sobrevivo. Há algo que me prende aqui, que me prende junto a ela. Não é masoquismo abstruso, de maneira alguma – sofrer é a coisa que mais me irrita dentre todas no mundo. Não é, também, minha há muito extinta esperança, lutando com afinco para permanecer em pé – mal sabe ela que já perdeu a batalha há muito tempo. O real motivo para ficar aqui é a razão do meu sofrer.

Sei que ela desmoronará se eu a deixar.

Ela foi deixada uma vez. Deixada sozinha, abandonada, trocada por outra garota. Sei que ela perdoou seu ex-namorado, mesmo sabendo que ele está de casamento marcado com a outra. Entretanto, conheço também o tamanho do buraco que há em seu peito agora. Caminhar rumo ao crepúsculo seria como ajudar a cavar ainda mais seu peito. E temo que a cratera em seu peito a domine, e ela se torne vazia.

A promessa que faço é silenciosa. Nem meus pensamentos ouvem. Mas sei que prometi.

Jamais a deixarei. Mesmo que isso me mate.

Ela

Eu não dormi. Nem por um minuto, durante a noite toda. Sei que ele pensou em me tocar – senti o calor de sua pele próxima a mim. Não sei o porque. Mas sei que gostaria que ele tivesse me tocado.

Enquanto ele dormia, eu toquei seu rosto.

Sua pele é tão quente, que pensei que ele estivesse doente. Mas não está. Seu cabelo caia sobre seus olhos, e o que eu mais queria era que eles estivessem abertos, e eu pudesse ver o castanho quente de seus olhos e linha sombria que contorna sua íris. Quero ver a alegria dançar neles – mas não há alegria.

Por que não dói?

Meu coração não dói. Busco a dor em mim, fundo em minha mente, dentro de meu íntimo, no âmago de minha alma, mas ela não está lá. Isso me intriga. Não que eu sinta falta da dor, mas sinto que algo a amortece. Algo é um analgésico, um anestésico, que não permite que o buraco em mim me arranhe.

E eu olho para o motivo.

Deitados lado a lado, eu encaro seu rosto na pálida, lânguida e preguiçosa manhã. Ele dorme. Mas quem dorme não chora, não é?

Uma lágrima escorre por sua pele de porcelana, e isso me assusta, me sobressalta. Não há motivo pra ele chorar, pelo menos não um que eu conheça. Ou há?

E tudo se encaixa. Todas as peças têm formas perfeitas, e se juntam umas às outras com desenvoltura. Pergunto-me como não as consegui ajuntar antes, quando tudo é tão óbvio, e tão claro e evidente. Estava debaixo do meu nariz o tempo todo. Não havia mistério, não havia equivoco.

Meus lábios tocam os seus febris. Espero não estar enganada. E algo grita para mim que não estou. E quando começo, não posso parar. Ele me ama, eu o amo e ponto final.

- Você?... – tenta ele dizer, mas não permito.

Quando o amanhece é tão sublime que imagino estar sonhando.

Talvez eu tenha voado. Voado alto, no céu, sem um rumo, perdida. Talvez eu tenha sido achada, talvez eu tenha encontrado. Talvez eu estivesse flutuando sobre as águas, livre e solta, sem algo que me guiasse em qualquer direção. Minha imaginação – quem sabe uma memória – me faz sentir molhada, a água salgada sobre mim, o ar com cheiro de maresia, quente e gostoso. Talvez eu estivesse escavando no subsolo, muito, muito abaixo do solo visível, cavando buracos que não me levavam a lugar algum. De alguma maneira, eu cheguei. Eu encontrei o que procurava. Foi mais difícil do que eu pensei, e no processo, fui atingida, e me cortei. Me rasguei feio, e quase, por pouco, morri. E ele me reavivou. Soprou em mim, e fez eu sangue correr. E eu, egoísta e ignorante, quase o matei.

Ele beija o topo de minha cabeça. No presente, estou feliz. Não sinto nada. Não há dor. Só sinto sua pele fervilhante contra minha pele, e suas mãos entrelaçadas nas minhas.

Como eu observava agora a pouco, a alvorada é sublime. O céu está colorido – azul e rosa. Não há como escapar disso.

O convite para o casamento chegou no dia anterior. Ontem.

Inicialmente, não quis abri-lo. Mas abri. Dentro, havia um bilhete, escrito a próprio punho, pela garota que roubara de mim um pedaço do mundo.

“O que te fiz é imperdoável. Queria, sinceramente, poder reverter tudo, e que vocês dois pudessem estar juntos. Mas o tempo não volta atrás, e não espera ninguém. Juro que lhe enviei este convite unicamente porque sabia que você não está mais inerte. Sei que você finalmente encontrou a outra metade de sua alma. Como eu encontrei a minha. Muito provavelmente, você me odeia. Eu não tiro sua razão. Ao contrário, te dou minha razão. E não quero que você se sinta ofendida com meu convite. Mas seria importante para mim se você viesse. Não espero que você me perdoe, mas que, tão somente, compreenda. Mas antes de tudo, desejo a você o máximo de felicidade do mundo, e um pouco mais. E que seu amor esteja com você eternamente. Me desculpe por tudo.

“P.S.: parabéns pelo bebê”

Fecho o bilhete. Não sinto raiva dela. Não consigo sentir raiva. Aconteceu há somente um ano, e minha ferida ainda não se fechou completamente – pois eu não consegui esquecer tudo – mas não posso odiá-la. Graças a ela, eu tenho tudo o que mais amo neste mundo. Meu marido, meu filho.

Como poderia odiá-la, se devo tanto a ela?

Ambas as personagens, de Crepúsculo e Amanhecer

No dia em que nos encontramos, no dia em que todas feridas foram completamente curadas, e que não há mais nada o que chorar, finalmente nos olhamos nos olhos. Vemos os olhos uma da outra. Vemos o rosto uma da outra. Vemos as pequenas crianças uma da outra, e os sonhos uma da outra.

Deveria ser o contrario. Deveríamos pensar o contrário. Mas amamos uma á outra. Devemos muito uma á outra. Pois, mesmo que de uma maneira muito dolorosa, demos uma á outra exatamente o que procurávamos.

Falamos ao mesmo tempo, o som de nossas vozes ecoam em nossas cabeças, altas e claras, e genuínas. Não sabemos como, mas, de alguma maneira, entramos em sincronia. Quase como se fossemos uma.

- Obrigado – dizemos, com sinceridade.

E é verdade.

Pois somente depois de um anoitecer turbulento, de um crepúsculo escuro, vem uma alvorada perfeita e clara, vem um amanhecer incrível.

Fim

Bruno R Montozo
Enviado por Bruno R Montozo em 30/05/2014
Reeditado em 09/06/2014
Código do texto: T4825721
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