Júlia; e seu primeiro fio branco
Escovar os cabelos pela manhã era parte da arrumação. Rotina diária. O dia começava dando indícios que terminaria como o anterior, quando quebrou-se a rotina por via dum detalhe – Ah, os detalhes. –: um fio branco.
Normalmente Júlia apenas escova os cabelos, sem que os reparasse. Isso era coisa de sexta ou sábado à noite, manhã de segunda-feira era de arrumação para o trabalho, sem tempos para bajulações e paparicos a si mesma. Sem tempo para detalhes.
Espantou-se, deixou escapar um grito. Sozinha, ninguém o ouviu. Por sorte, preferia segredo. Era grave. Era imenso aquele fio branco.
Passou-se um filme em sua cabeça, do tempo, por ironia, preto e branco. Assustador. Talvez um aviso. Julia tinha vinte e nove anos de inconstância e solteirice, moça reservada, e agora, na sua definição: velha. Velha demais. Fios brancos pouco enganam. Suas lembranças de adolescente sumiram, seus últimos anos de festas e bagunças tornaram-se passado muito antigo, agora estava mais perto da mulher de negócios, trabalhos, solitária, rumo aos quarenta, quarenta e cinco, cinquenta anos que passaria sozinha; séria, coberta de incertezas que não haveria tempo de serem remediadas. Seu tempo seria tomado por trabalho, livros, manias antigas, coisas de velho. Surtou. Que iam pensar? Dizer? Tinha de arrancá-lo, mas, se houvesse outro escondido? Tudo era-lhe dúvida.
‘Preciso de um decote escandaloso, ou uma saia pra lá de curta. – dizia a si – Talvez um boné, dos bem grandes’ – rezavam alto seus pensamentos, pedindo-lhe desesperadamente solução. Mesmo que ridícula, para que ninguém notasse, para que passasse despercebida, e, é claro, jovem.
Não que as pessoas não aceitem que o tempo passa, tolice, elas não aceitam como ele passa, e como deixam-no passar. Júlia era assim, havia perdido tempo, muito tempo, sem respostas, felicidades, histórias para contar. Não podia envelhecer agora. Ficar passada, sem tempo. Anteontem seu domingo era de churrasco e festa, hoje não poderia ser de tricô e chá, não que isso seja coisa de velho, mas assim pensava. Sem tempo para romances, filhos, netos, aliás, o que menos queria essa altura era neto, se um fio branco a transtornava, convidando-a para ver o tempo que sorria na janela, imagine o que provocaria um neto.
Júlia amava crianças, tinha sonho de montar família, mas agora, nessa idade, seria fora do normal.
Maquiagem de adolescente, roupas de passeio noturno, vulgar demais para um escritório, para trabalho. Desfez tudo. Troca roupa, inclinação do espelho, tudo possível. Inútil, o tal do fio branco não sumia. A troca de roupas durou até bem depois do seu horário habitual, havia consumido tempo de outra parte da rotina, que não incluía atrasos, mas era dia atípico, primeira vez que conhecera cabelos brancos.
Pronta, ou quase isso, não muito comportada, menos vulgar, completamente insegura, e agora, atrasada.
Júlia era manceba linda. Pecava pela falta de confiança e uma vaidade confortada, adormecida, que não provocava muitos encantos. Cheia de medos e sonhos que se conflitavam, que impediam-na de ir adiante. Linda, mas, por descaso, pouco atraente. Era de festas, agitações, com seu jeito contido, medroso, insosso.
Seu carro estava na oficina naquela manhã, o que a fez pela primeira vez em anos ir trabalhar de ônibus. O que por aquela altura significava se expor a tantas pessoas. Júlia era pouco vista nas ruas do bairro, o que provocou ainda mais olhares, cochichos, múrmuros que na sua cabeça eram gozações, chacotas de seus cabelos brancos. Bobagem, ninguém os percebeu.
O dia lhe rendeu dezenas de elogios, cortejos, convites, há tempos que não era assediada, paparicada. Estava encantadora, tinha se arrumado com um propósito, parecer jovem, desviar a atenção dos cabelos, do fio imperceptível; com sucesso, estava atraente, e agora, confiante.
Chegando a casa, correu para o espelho, e dessa vez reparou primeiro o sorriso: estava enorme, branco e brilhante. Importou-lho mais. Suas dúvidas cessaram por um instante, os pensamentos tomaram outro rumo. A menina suspirou profundamente com felicidade não costumeira em sua rotina, quebrada pelo alvoroço do tempo, que lhe trazia a felicidade representada por um sorriso: encantador, restaurador; que lhe pedia mais cuidado e atenção para si mesma. Que lhe pedia mais sorrisos, ainda mais encantadores; mais sorrisos de uma moça jovem.