MARIA SALERTE E O ENCONTRO COM O PASSADO
Durval Carvalhal
Salerte era uma jovem alegre, inteligente e dinâmica. Tinha ótima visão de futuro. Queria ser empresária do setor turístico. Por isso, formou-se em administração de empresas. Seus pais, ambos com cinquenta anos, tratavam a primogênita com enorme carinho. Depositavam-lhe grandes esperanças, já que era a única das cinco filhas a adentrar uma faculdade.
Aos 25 anos, tinha pouca experiência amorosa. Sempre se dedicara aos estudos acadêmicos e cursos complementares, como o das línguas inglesa e espanhola, como reforço profissional. Teve alguns namoricos, amores de voo de galinha, exceto o idílio com um médico-escritor, que chegou a tangenciar o noivado. Findo o marcante romance, nada mais de sério ocorreu na vida amorosa da esbelta morena de cabelos negros e compridos e compleição física de dançarina.
Em face de uma greve policial na cidade, o curso noturno de pós-graduação em Finanças começou com atraso. Em vista disso, ela vivia ansiosíssima. Não via a hora de as aulas começarem, até que a greve acabou, devolvendo a normalidade ao cotidiano. Pela manhã, foi ao salão de beleza do bairro. Cuidou dos cabelos e das unhas. Vestiu-se com o apuro e acerto de quem vai ao primeiro encontro de um novo amor. Dir-se-ia que era uma miss completa, bem acima do ideal de beleza.
Despediu-se da família:
- Tchau, gente! Até mais!
Respondeu-lhe a mãe com ternura e em nome de todos:
- Tchau, minha filha! Boa sorte.
Pegou o elevador do prédio e foi até a garagem. Ligou o carro e partiu para os estudos. No trajeto, imaginava muitas coisas. Indagava-se:
- Como deverão ser meus novos colegas?
Mas eram preocupações periféricas, sem maiores importâncias. A preocupação substantiva era com o curso. Com o nível supostamente alto dos professores e com o conteúdo das disciplinas. Enquanto dirigia, vez por outra, se lembrava de Hidel Santana, de quem gostou apaixonadamente. Mas, depois do fim do romance, esforçou-se para esquecê-lo e teve êxito. Acreditava que realmente o esquecera.
No horário do rush, o trânsito ficava insuportável. A cidade travava. As ruas pareciam um estacionamento gigantesco. E ninguém saia do lugar. Como consequência, chegou atrasada, no primeiro dia de aula. Adentrou a sala cheia de colegas. Todos a olharam com o espanto e a curiosidade de quem olhava uma beldade rara. Saudou a turma e sentou-se. Respirou fundo para voltar ao seu normal, quando flagrou um olhar fixo de alguém na sua lateral esquerda. Não deu atenção. Mas, diante da insistência ocular, incomodou-se um pouco. Furtivamente, voltou-se na direção daqueles olhos insistentes.
Chamava-se Roberto. Deixou-se atrair pelo porte daquele rapaz simpático, alto, elegante. A aula fluía, mas Salerte não conseguia se concentrar na explanação do professor, até que chegou a hora do intervalo. Logo, já estava integrada. Conversava com as colegas sobre assuntos femininos, formação pessoal e a expectativa do curso. Até que foi interrompida por alguém:
- Boa noite! Tudo bem! Está gostando da aula?
- Sim! Muito interessante. E você?
- Também estou gostando, ainda que seja muito cedo para fazer boa avaliação da disciplina e do mestre.
- É verdade. Como é seu nome?
- Maia. Roberto Maia. E o seu?
- Salerte dos Anjos.
Nesse exato momento, soou o sinal de recomeço da aula, e todos voltaram aos seus lugares. Os dois ficaram pensativos, tomados de simpatia mútua, e a explicitar isso em seus olhos. A futura empresária sentia o palpitar forte do coração. Talvez tivesse encontrado o seu porto seguro. Finda a atividade acadêmica da noite, ficaram a conversar na porta do prédio, até que se despediram, encantados um com o outro.
Ao chegar a casa, ninguém havia dormido. Todos queriam saber sobre o seu primeiro dia de aula. Diante da saraivada de perguntas, pôs-se a falar de tudo um pouco. Falou da aula, das colegas e principalmente da simpatia que sentira por elas. Ao mesmo tempo séria e exaltada, falou também de Roberto.
- Hum! Vai dar casamento! - profetizou uma de suas irmãs.
-Será, meu Deus? - jubilou-se a mamãe.
-Não sei, não! ponderou Salerte, cheia de entusiasmo e esperança, mas com uma ponta de ceticismo.
Os dias se passavam. As aulas transcorriam normalmente, o relacionamento com as colegas se aprofundava, e se agravava a grande amizade com Maia, até transformar-se em namoro sólido. E o casal, cada vez mais, convencia-se de que aquele namoro caminhava para outra dimensão. Disso ninguém mais tinha dúvida. Esperava-se tão somente a hora do desfecho. Vivia-se, afinal, no melhor dos mundos possíveis. A data do casório fora marcada. Profeticamente, seria numa quinta-feira, primeiro dia do mês de abril.
As famílias exultaram. Marcaram o primeiro jantar, no qual predominou a elegância. Com o passar dos dias, foram se aproximando mais e mais. Já se conheciam bem e viviam em perfeita harmonia. A integração era grande. Convidavam-se com frequência para encontros sociais domésticos ou externos. Especulava-se sobre tudo, de amenidades à política; da música à religião e, sobretudo, sobre a violência que amedronta todos.
Os pais do noivo, conscientes de suas responsabilidades, garantiram um evento agradável para todos, além de fornecer a lista dos seus convidados à família da noiva. Os pais de Salerte encarregaram-se do enxoval e tomaram todas as providências para o sucesso do mega-acontecimento. Era o primeiro enlace matrimonial das cinco filhas. O júbilo familiar era imenso.
Na faculdade, algumas colegas elaboraram uma lista para o chá de cozinha. Arrolou-se um grande número de objetos caseiros imprescindíveis. Não faltou nada, nem mesmo fraldas para um futuro bebê. Organizou-se, também, uma festa de despedida de solteira, que seria realizada num restaurante chique, um dos melhores da cidade, frequentado por pessoas de bom gosto. A data do evento passou despercebida em face da alegria que cercou o fato: dia 13, uma sexta-feira do mês de agosto.
No dia do casório, a noite estava bonita. O céu plenamente azulado. As estrelas exibiam um fulgor impressionante. E a lua, majestosa como uma rainha, compunha a beleza noturna naquele dia tão esperado. A igreja estava um primor, toda decorada e organizada; entupida de gente, de familiares, convidados, fotógrafos, padre; parecia um clube social em dia de festa, onde reinavam a alegria e a esperança.
Enquanto a noiva ultimava os detalhes da arrumação para o episódio religioso, Maia já estava a caminho do santuário. Estava um pouco nervoso, o que não lhe tirava a habitual elegância principesca, num black-tie elegante: smoking, camisa branca, gravata borboleta, colete e sapato Oxford.
Ao ultrapassar um automóvel que corria com certa lentidão, o carro que transportava Maia bateu de frente com uma carreta. O veículo entrou quase todo por baixo da jamanta. O noivo ficou preso entre as ferragens, com seus acompanhantes. Foi necessário que o Corpo de Bombeiros usasse todo o seu ferramental para retirar os corpos, quase irreconhecíveis. Em estado gravíssimo, as vítimas foram levadas ao hospital. Chegaram praticamente sem vida à UTI...
Nesse ínterim, a noiva alcançava o templo cristão com ar de uma deusa. Era a imagem viva da felicidade. Não se cabia em si de contente. Mas, diante da demora do noivo, começava a se preocupar. Os convidados também. Telefonemas se repetiam, e ninguém atendia. Todos estavam impacientes. Pensava-se em tudo. O tempo corria, e o desespero tomava conta de todos. Até que a mãe da noiva, Dona Eulália dos Anjos, conseguiu contato com alguém:
- Alô, alô, alô! Quem fala? É o telefone de Maia?
Responde um policial:
- Sim. Esse telefone é de um rapaz que acabou de sofrer um grave acidente e está internado no Hospital do Povo, aqui no bairro da Morca.
O desespero arrebatou aquela senhora. Mal conseguiu explicar a quem a rodeava que houvera um acidente grave, e que todos estavam internados no Hospital do Povo. Depois, desmaiou. A trágica notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora, ferindo, feito um punhal, todos os corações presentes. Seu Miguel, pai da nubente, ainda encontrou forças para amparar a esposa.
Salerte foi inteiramente dominada pelos sentimentos de revolta e tristeza. Transtornada, as lágrimas jorravam caudalosamente dos olhos e desciam rosto abaixo. Era gigantesco o abalo moral pela possível perda trágica e repentina do amado. Seu estado de espírito era lastimável. Suas pernas tremiam, e andava tropegamente. Embora dorida, mantinha-se consciente de tudo à sua volta. O desespero a assomava. Sabia que a dor seria para sempre, só mudaria de intensidade. Familiares e amigos foram imediatamente para o hospital.
Na chegada à casa de saúde, o desespero coletivo aumentou a dimensão da tragédia. Muitos queriam ver os corpos, notadamente o de Maia. Ainda estavam na UTI. Abre-se uma porta, e sai um médico, que se aproxima da jovem viúva:
- Sinto muito, senhora!
Salerte se vira e olha o médico apiedado. Em meio a tanto sofrimento, ainda encontrou forças para se assustar. Era o Dr. Hidel Santana, que prestara os primeiros socorros à vítima. Não conseguia acreditar. Era muita coincidência. Pensou: “Mas por que isso, meu Deus?”, e sentiu um pouco de consolo com aquele tão inesperado encontro.
Ele também se assustou diante de sua antiga paixão. Num instante, relembrou o malogrado romance. Compreendia o profundo sofrimento da ex-noiva, por quem ainda nutria algum amor. Sendo médico, sabia que a morte era como uma ferida, que sangra, arde e dói. Uma ferida que só se fecha com o tempo. Como a vida não poderia parar, ela precisaria reaprender a viver, a superar-se a si mesma, minuto a minuto; buscar dentro de si o que restara de sentido da própria existência, para reconstruí-la - e ele seria o protagonista da reconstrução de uma vida a dois.