O AMOR DE SARA - reeditado
É muito pouco provável que eu venha a sentir as coisas que até ontem me atingiam de cheio. Não consigo, no momento, concentrar-me em nada do que demanda minha responsabilidade.
As gavetas continuam repletas da papelada que me foi confiada e, se não fosse a chuva que se derrama com fúria sobre o zinco da minha cabana, a selva que me cerca e me protege seria agora a minha maior confidente. O café deixei-o inteiro na mesa, o sofá onde me recosto ainda se cobre do lençol branco e do edredom que me abrigaram do frio da noite. A toalha vermelha, respingada de preto, tingida aqui e ali do açúcar que deixei escapar da colher, o misto quente que sofreu apenas mordidas, descansando no prato, a fumaça ainda se esvaindo da xícara, o cinzeiro redondo empilhado de guimbas, tudo isso reflete o meu interior, meu interior manchado palas palavras de Sara ao de mim despedir-se semanas atrás.
Ela não cumprira a promessa de me amparar, de proteger do mundo a minha insegurança. Nunca entenderei porque, depois de uma amizade partida da adolescência, e transformada em amor a nossa união fora tão curta, despedaçando sonhos e transformando vidas. Agora, sem Sara, sou obrigado a aqui permanecer até que a vontade de continuar vivendo me indique uma saída e uma opção de vida.
Sara foi o grande e inesquecível amor de minha vida. Quando crianças, vivíamos mais juntos do que separados. Não largávamos as mãos um do outro enquanto caminhávamos nas calçadas altas do nosso inesquecível bairro. Mesmo sabendo que ali era impossível mantermos aquele laço de mãos, devido aos odiosos espaços que os carros estacionados deixavam entre nós e as paredes das lojas, andávamos mesmo assim, eu puxando Sara pelo braço e apertando-a contra a parede e os carros.
Trombávamos os outros pedestres, deles arrancando caras feias e gestos mais feios ainda; atravessávamos fora da faixa, corríamos ao atravessar sem medo da buzina ensurdecedora dos motoristas enfurecidos e, dali, esparramávamos nossos corpos cheios de vida sobre os bancos e cadeiras da primeira lanchonete que nos encontrasse pelo caminho. Que nos importavam os olhares acusadores da nossa indiscrição? Que mais poderíamos querer da vida? Éramos tudo; éramos felicidade, juventude, sonhos e ironia. Agora, passados esses momentos sem Sara, quero visitar as praças, os cinemas e os Shopping Centers que tanto nos acolheram.
Quem sabe num desses lugares, em retrocesso, não volto a ser feliz. Sem Sara, mas cheio de suas lembranças?
É impressionante como nossa visão nos engana à primeira vista. Era tão constante e enlouquecedor o meu pensamento em Sara que achei ser ela a menina que, de costas para mim, saboreava um sorvete a dez metros da mesa onde eu me encontrava, na praça de alimentação do Shopping Center.
O movimento era intenso e eu não conseguia a confirmação da minha visão parcial. As pessoas aglomeravam-se ao redor do balcão. Os atendentes corriam de um lado ao outro com os seus pedidos, despachando-os em direção aos braços estendidos e ansiosos. A cada vez que eu procurava visualizar a pequena era um casal que cruzava a minha frente ou uma e outra criança puxando pelo braço a mãe para dentro de alguma loja. O movimento de pessoas era desconcertante por ser uma tarde quente de sábado.
Quando o alvo do meu interesse abarcou com uma das mãos a casquinha oferecida pelo funcionário da sorveteria senti que era o momento apropriado para eu tirar de vez a minha dúvida. Seria ela de fato a minha Sara ou não passaria de mais um engano meu exacerbado pela minha louca paixão?
Não tive tempo sequer de ponderar essas ideias, pois ela saiu do meio da turba de forma ágil e imperceptível. Quase a perdi de vista. Entrou pelo corredor ao lado e seguiu beirando as vitrines abarrotadas. Eu me desvencilhei de algumas cadeiras que me atrapalhavam, empurrando-as para o lado, não ligando à balburdia que estava causando, tampouco às caretas de insatisfação dos meus vizinhos de mesa. Pessoas iam e vinham no corredor. Por certo me tinham como louco ou alucinado, andando às trombadas, olhando ao longe, enquanto, distanciando-se cada vez mais, ia a minha presa. Imagina seguir alguém, tendo a preocupação de não o perder de vista, dentro de um Shopping Center abarrotado de gente; missão quase impossível a minha.
Mas fui adiante. Quando ela virou no corredor seguinte redobrei a preocupação; acelerei ainda mais os passos. Fui, contudo, infeliz na minha estratégia. Não a vi quando alcancei a galeria seguinte. Olhando para todos os lados, caminhando agora lenta e pesadamente, estive a ponto de desistir quando a sorte voltou a me favorecer.
Havia entrado em uma loja e agora, deixando-a, voltou a caminhar no mesmo ritmo apressado.
Dirigiu-se para a saída. Seria esta uma oportunidade de apreciá-la melhor e acabar com a incerteza que já estava me torturando. Se olhasse para trás ou para o lado e eu pudesse verificar sua fisionomia... Tudo o que fazia, porém, era caminhar firme e decidida como a dirigir-se a um local com hora marcada. O vestido justo colado ao corpo, um casaquinho branco, a maneira de andar, o leve saracoteio a exibir as formas perfeitas, as batatas das pernas, belas e musculosas. A cabeleira loira aparada simetricamente a enfeitar os ombros. Em tudo era Sara e eu me convencia a cada passo seu e a cada tentativa minha de aproximar-me cada vez mais.
Seguia agora entre os automóveis no amplo estacionamento. Era a oportunidade que eu esperava. Os últimos sinais de claridade haviam desaparecido dando lugar a um princípio de escuridão, tornando mais discretos os gestos e menos perceptíveis as intenções. Ela se aproximou de um dos carros estacionados. Seria, até aquele momento, o único sinal negativo entre minha Sara e aquela mulher, já que Sara nunca dirigira um automóvel. Ainda assim continuei confiante porque sei que os tempos mudam e as pessoas também.
O derradeiro esforço que eu fizera para ver-lhe a fisionomia me fora negado pela rapidez com que ela entrara no carro assim que me aproximei para olhar o seu rosto. Não sei se percebera a minha chegada. Entretanto, não deixaria que partisse dali sem que minha curiosidade e o meu tormento fossem definitivamente aplacados.
- Deseja alguma coisa?
Esta frase encheu-me de susto e não menos de vergonha. Ouvi-a no momento em que me abaixava para olhar a mulher que acabara de se sentar ao volante. A voz era de um homem; num tom grosso e autoritário. Ao olhar mais atentamente percebi, no banco do carona, um cavalheiro, de terno, de aparência jovem e elegante.
Não fiz outra coisa a não ser desculpar-me com palavras que me vieram na hora e sair dali tão discretamente quanto havia chegado. Quanto à mulher que segui? Não era Sara. Ainda bem, para meu alívio e esperança.