AMOR DESTRUIDOR
— Então, você está mesmo bem?
— Claro, estou ótima. Nunca me senti tão feliz.
— É preciso ter muito cuidado daqui pra frente.
Carlão e Claudiana comemoram a notícia. Ela está grávida e ambos decidiram levar a notícia aos amigos. Como o único lugar social que os dois freqüentam é o Bar do Taveira, é lá mesmo que estão celebrando. Espalhando a boa nova.
— Você só toma refresco, minha nega. Nada de cerveja de hoje em diante.
— Tá bom. Carlão. Mas num precisa exagerar na cachaça. Esta é a quarta ou quinta dose. Vê lá, hein?
Claudiana trata Carlão com excesso de cuidado. O rapaz, que acabou de completar vinte e dois anos, não trabalha e é adicto à bebida. Suas bebedeiras já alteraram sua personalidade e ela encontrou uma explicação para o comportamento do amado-amante.
— Coitado, ele é esquizofrênico. — Cada bebedeira ela o desculpa. — Teve uma recaída.
É ela quem providencia o ganho para as despesas do barraco e o mantém. Trabalha como cabeleireira em salão do centro da cidade, onde é eficiente e faz sucesso por sua cordialidade e beleza. Morena, bem conformada de corpo, olhos grandes e boca sensual, tem pouco mais de vinte e cinco anos e está no auge de sua beleza. Elegante, cuida-se bem e tem diversos admiradores que por certo poderiam lhe proporcionar vida muito mais interessante. Homens do centro da cidade e vizinhos do modesto bairro onde moram não se cansam de dirigir-lhe olhares significativos ou cantadas diretas. Carlão sabe de toda a situação e sente medo de ser abandonado por ela.
Sua complacência para com Carlão só se explica pela paixão avassaladora que a acorrenta implacavelmente ao trastalhão.
— Vou no banheiro, me espera aqui, hein? Vê se te comporta.— Pretende afastar a insegurança mostrando-se ameaçador.
— Vai, meu anjo, que num tem perigo. Tenho um filho teu aqui comigo.
Carlão demora-se no banheiro. Tempo suficiente para que um freguês do bar, recém- chegado, notando a presença da moça sentada sozinha à mesa, lhe dirija um convite.
— Dá licença? Posso lhe oferecer uma bebida?
— Vai rodando, tou acompanhada. — Claudiana sabe como cortar a cantada e não tem papas na língua. Aliás, usa a linguagem comum do local.
— É que vi você aí, tão solitária. Posso lhe fazer companhia.
— Já te falei, tou acompanhada. Olha, aí vem o meu homem.
De volta à mesa, Carlão ouve o final da conversa, vê o estranho se afastando e logo se ouriça.
— Que tá acontecendo? Quem é esse cara aí?
— Sei lá, tava me...
— Cê tava dando bola pra ele, é isso? — Carlão não espera explicações. — Vamos embora, antes que eu arrebente tudo por aqui.
O estágio no banheiro não lhe refrescara a cabeça. Pegando a mulher pelo punho, puxa-a para fora. O homem que a cortejara vai para o fundo do bar. Taveira, antes de perguntar ao freguês o que deseja beber, vai explicando:
— Melhor deixar eles resolverem a situação. Sempre que vêm aqui, o final é o mesmo: briga, discussão, tapas.
Chovia forte quando os dois saíram do bar. Sem se preocupar com a chuva, ele vai gritando:
— Que papo era aquele, hein? Você é mesma uma safada. É só eu sair um minuto de perto e começa a olhar pra todo mundo.
— Escuta, Carlão, eu...
— Cala a boca! Vadia! Pensa que eu não sei das cantadas que os homens te dão?
— Meu amor, eu estava...
— Que meu amor, que nada. Vamos, diz logo quem era o cara.
Ela escorrega e cai. Ele a puxa, arrastando-a pela lama. Aos trancos, chegam à casa. Entram. Uma bofetada estala no rosto da morena. Ela escapa da garra do amante, foge, sai correndo pela rua, indiferente à chuva que lhe acicata o rosto em alfinetadas.
Talvez Carlão fosse mesmo esquizofrênico ou maluco, qualquer coisa assim. Depois daquela noite, ficou doente de desconfiança. Obcecado. As explicações de Claudiana não apaziguaram seu espírito. Deu em falar sozinho. Pior, adquiriu um estilete, cuja lâmina se encaixava no cabo e saltava com uma leve pressão do polegar, já pronta para ser usada.
— Preciso estar preparado para essas patifarias — Ia remoendo sua preocupação em ser abandonado.
Claudiana, todavia, estava cada vez mais apaixonada. Desculpava todo o desvairo de Carlão. A paixão toldava-lhe a visão, os sentidos, o raciocínio. E ainda mais agora, grávida, sentia-se absolutamente presa e submissa àquele desvairo sentimental.
Nas suas andanças sem rumo, Carlão encontra-se novamente frente a frente com o homem que abordara Claudiana no bar do Taveira. Não fazia muito tempo, talvez três semanas, e a lembrança do homem estava viva ainda na sua mente. Desde a primeira palavra dirigida por Carlão ao estranho, revelou-se a tragédia iminente. Carlão não sabia, não tinha como saber que o interpelado era ex-policial e ágil capoeirista. Franzino, foi logo empurrado e esmurrado. Mas como a vida não segue as linhas da lógica, eis que Carlão, num lance de sorte (ou desgraça?) logra sacar do estilete ao se agarrar ao adversário, e num gesto desesperado e inesperado, crava-o mortalmente nas costas do adversário, que morre no ato.
O choque atinge Claudiana em cheio.Por pouco não perde a criança. Sofre com a prisão mas assiste com coragem ao julgamento de Carlão. Seu depoimento é fundamental, pois sua insistência em atribuir o crime ao desequilíbrio do amante leva o tribunal a exigir laudo de sanidade mental. O qual confirma a alegação da amante: Carlão é mesmo maníaco-depressivo. Entretanto, esta constatação não o livra de uma pena que o condena a dez anos de reclusão em manicômio judiciário, localizado em cidade bem distante de sua residência.
Mulher inteligente, Claudiana compreende que, dali pra frente, ela está sozinha para criar a criança. Na primeira vez em que visitara Carlão em sua reclusão, notou a transformação do homem: não mostrou o menor interesse pelo seu estado, nem qualquer emoção. Quando, após dar à luz a uma menininha, a levara para que o pai a conhecesse, foi quase que ignorada pelo recluso. Seu amor, entretanto, não esmorecera um só momento. Ela compreendia que tudo o que acontecera entre os dois, a tragédia que se abatera nas suas vidas, tinha acontecido exclusivamente por sua desvairada paixão. Inexplicavelmente, continuava amando seu homem, num sentimento que jamais conseguiria sufocar.
A vida continuou para Claudiana, que agora tinha para sustentar o fruto de sua paixão. De volta ao trabalho, continuou a chamar a atenção pelo porte e pela beleza. E foi assim que conheceu Clodoaldo.
Motorista de ônibus, alternava dias de viagem com outros de descanso. Viúvo, tinha um filho de quatro anos. Acompanhou, sem muito interesse, o caso do crime e julgamento de Carlão por ouvir dizer, através de notícias que lhe chegavam nos dias em que permanecia na cidade. Afável e confiável, surgiu na vida de Claudiana como uma tábua de salvação, um arrimo. Uma pessoa em quem podia se amparar.
— Quero que você saiba tudo sobre mim. Não quero nem por um momento lhe enganar. — Ela foi firme logo nos primeiros encontros.
— Sim, eu sei do drama que você viveu. Mas isso já passou. Vamos olhar pra frente?
— Não, você não sabe de tudo. Acontece que ainda amo Carlão. É um sentimento que não acaba nunca e que não posso lhe esconder.
— Mas podemos tocar nossas vidas. Você não vai esperar a vida toda pela volta dele, vai?
— Até que poderia esperar. Mas acontece que ele é realmente um paranóico. Tenho certeza de que ele não me quer mais.
— Olha, não quero saber de falar do seu ex. O que importa agora é nossa amizade. Também tenho meu passado. Vamos esquecer o meu e o seu passado. Você quer se casar comigo?
A proposta era franca e leal. Claudiana pensou alguns dias e resolveu pela sua aquiescência.
Ao casamento seguiram-se anos de bonança e aparente felicidade. Claudiana e Clodoaldo geraram mais duas meninas, Fátima e Clair, que convivem com Heleninha como irmãs. Formavam uma família tranqüila, os pais trabalhando e as crianças crescendo.
Claudiana sente a nostalgia de um amor perdido. Nem mesmo a correria dos filhos pela casa consegue dissipar a saudade e a tristeza dos momentos de paixão e felicidade vividos com Carlão.
Clodoaldo não se incomoda com os devaneios de Claudiana.
— Não adianta ficar chorando pelo leite derramado. — Tentando animar a esposa, faz blague da situação. — O louco tá no lugar que lhe convém.
Claudiana escuta, impassível, os comentários do marido. Sabe bem que não é bem assim.
Carlão, o assassino maluco, cumpre o seu tempo. E o tempo mudou Carlão: ao sair da reclusão, está quase recuperado. Durante todos esses anos, perdeu contato com o mundo. Mas é natural que, liberado, procure reconstruir sua vida a partir da pequena cidade, palco do drama que modificara as vidas de tantas pessoas – que continuam sob o signo da mesma tragédia interminável.
— Sabe quem está na cidade? — Zuleide, colega de Claudiana, pergunta-lhe em tom de fofoca.
— Sei lá eu, Zu?
— Carlão! E tá aqui na cidade!
Que susto! Claudiana não tem como esconder a emoção.
— Como é que você sabe?
— Teve aqui hoje cedo. Conversou comigo, perguntou por você. Cortou o cabelo, fez as unhas. Está nos trinques. — Zuleide é travesti, gosta de enfeitar as informações. — Saiu daqui bem satisfeito, elegante...Também, com o tratamento que lhe dei!
Claudiana fica agitada. Ai, meu Deus! Tenho de ver Carlão. Não agüento mais!
Mas Carlão se esquiva, não quer encontrar a mãe de sua filha. Claudiana fica agitada ante a possibilidade — e a dificuldade — de rever Carlão.
— Melhor você apagar esse fogo. — Clodoaldo adverte a mulher. — Mesmo sendo pai de Helena, não é seu marido, nada representa para você.
— Nunca lhe escondi meu amor por Carlão.
— Sei disso. Mas essa paixão é coisa do passado.
— Não é não. Sinto o mesmo por ele como há dez anos atrás.
As discussões entre Clodoaldo e Claudiana se tornam freqüentes, numa aspereza crescente. O marido toma uma decisão. Se consigo levar esse cara lá em casa, a patroa vai se desencantar de vez. O mistério acaba.Ele tá se fazendo de difícil justamente para chamar a atenção. O idiota pensa que é o tal.
— Quero que você vá ver sua filha lá em casa. — Clodoaldo convida Carlão, num encontro provocado para essa finalidade. — Vai ser bom pra você, para Helena e pra Claudiana.
— Não quero ver Claudiana. Ela não me interessa, deixou de me visitar logo nos primeiros meses em que entrei pro manicômio. Quando à Heleninha, quero, sim, vê-la.
Combinam o dia e a hora.
Clodoaldo e Claudiana moram numa boa casa, em bairro de classe média. O chofer é bem sucedido e proporciona uma vida de conforto para Claudiana e as filhas. Ama as filhas sem distinção entre suas duas filhas e a adotiva, agora com nove anos.Helena sabe da história do seu pai e compreende toda a situação.
Conforme o combinado, Carlão aparece no sábado à tarde na casa de Clodoaldo e Claudiana, para visitar Heleninha. Acompanhado por Leco, seu antigo amigo de bar e de zona. Ambos estão alegres, meio bêbados. Chegam num Chevete bem desgastado, que estacionam na frente da casa, bloqueando a saída da garagem, onde está o vistoso Gálaxie de Clodoaldo.
Claudiana está prevenida da visita do ex-amante. Ela também tomou uma dose de rum, para enfrentar a difícil situação do reencontro com Carlão.
— Não precisa ficar com medo, o Carlão tá mudado. Vem só ver Heleninha, nada mais. — Clodoaldo tenta acalmar a mulher. — Melhor não ficar bebendo.
Carlão desce do carro e caminha com cautela, quase empurrado pelo amigo, que o segue.
— Vamos lá, Carlão. Não é nenhum fim de mundo. Anda, homem!
Clodoaldo abre a porta. Na sala estão presentes Heleninha, Claudiana, Fátima e Clair. Claudiana está com os olhos brilhantes, gotículas de transpiração afloram sobre seu lábio superior e na testa. Está evidentemente ansiosa. Pretendendo permanecer forte, não quer demonstrar emoção.
A máscara lhe cai quando vê o antigo amante. Não consegue esconder sua paixão, adormecida — jamais extinta — durante tantos anos. Encara Carlão com simpatia. Ele está elegante, com essas roupas novas! O amor ressurge com a força e a incandescência da lava brotando de um vulcão adormecido durante tanto tempo. Abraça-o com força, beija-o no rosto e em seguida, na boca. Carlão tenta resistir, a principio, mas se abandona às caricias dela. Corresponde aos afagos apaixonados da mulher, ali mesmo, na presença das meninas e de Clodoaldo, que, de repente, levanta-se e tenta separar os dois.
— Olha as meninas! Separem logo! Tão pensando o que, que nossa casa é rendevu?
A intervenção de Clodoaldo dispara um bate-boca áspero, uma agressão verbal entre Clodoaldo, Claudiana e Carlão. As meninas amontoam-se no canto da sala. Leco assiste, impassível à cena de ciúmes. O bate-boca fica incontrolável. Ao fim de algumas frases desaforadas, Clodoaldo grita:
— Então você escolhe: ou eu ou ele! Esse maluco-beleza que nem tem onde cair morto!
No auge da raiva, ela responde, também aos gritos:
— Prefiro Carlão maluco do que você são!
— Então sai, sai da minha casa. Sai agora mesmo. Neste momento. Mas vai sozinha. Ninguém leva as meninas. — Instintivamente, aproxima-se das três garotas, abraçando-as.
Carlão readquire o bom-senso.
— Não, não quero ela não. Só vim ver Heleninha. — Dirigindo-se para a porta, é seguro pelas mãos de Claudiana, que tenta retê-lo.
— Quero ir com você.Me deixa ir. Sou sua, só sua. Quero ir com você! — No auge de seu desespero, é arrastada para fora de casa, agarrada em Carlão.
— Me larga, mulher. — Carlão se desvencilha de Claudiana e corre para o Chevete. Leco, antecipando o resultado da confusão, já está no carro, com o motor ligado, aguardando Carlão.
Claudiana, ágil como uma gata, corre na frente de Carlão.Chega ao carro, abre a porta de trás, senta-se e grita para Leco:
— Toca essa geringonça, vamos embora. Rápido.
Carlão entra a seguir. Senta-se ao lado de Leco. Bate a porta com violência. Vira-se para trás, dirige-se a Claudiana:
— Sai daí, sua puta, não....
Não tem tempo de terminar a ordem. Leco dispara o carro, os pneus gritando fino pela arrancada brusca.
Clodoaldo, abobalhado com toda aquela confusão, aparece com as meninas no portão da residência. Abraça as três garotas, enquanto o Chevete se afasta, rápida e definitivamente, pela avenida afora.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 8 de agosto de 2002
CONTO # 170 DA SÉRIE MILISSTÓRIAS