Seguindo o fluxo

Ela estava sentada numa cadeira fumando um cigarro. Ela deu uma longa tragada e pegou o cigarro entre os dedos da mão direita. Olhava para mim de um jeito que me intimidava esperando que eu falasse algo. Eu não olhava para ela mas sabia que ela estava me olhando desse jeito.

Eu estava deitado em sua cama olhando para o teto com um cigarro apagado na mão esquerda e o isqueiro na outra. Minha mão direita impaciente ficava a acender o isqueiro sem parar. Mais impaciente estava minha cabeça tentando organizar as ideias após mais uma briga. Minhas crises de liberdade, a TPM masculina, que não tem chocolate e nem cartão de crédito que resolva.

Queria aproveitar o calor da briga para terminar com essa relação. Tudo seria mais fácil no amor se todos mantivessem casos. O namoro cria um grau de comprometimento terrível que faz as pessoas sofrerem pois a dor do término é comparável a morte de um ente querido.

As pessoas costumam seguir o fluxo dos acontecimentos e por isso vem parar nessa vida e começam estudar, trabalhar e a procurar um amor para casar e fazer uma família como se isso fosse o segredo da felicidade. E por algum motivo eu segui esse fluxo para o mesmo lugar que todo mundo estava indo. Me apaixonei por uma mulher, me deixei envolver e a pedi em namoro. Meses depois e eu já olhava para o meu futuro e me via com 50 anos assistindo televisão 5D sozinho no sofá da sala, meus filhos trancados no quarto e entrando dentro de seus celulares para brincar de Matrix, enquanto minha mulher estaria no quarto conversando com seu sistema operacional pelo qual estaria apaixonada. Compreensível já que o sistema operacional lhe daria mais atenção do que seu próprio marido.

Eu tenho mais medo de virar um sujeito normal como qualquer outro ser humano manipulado pelos moldes psicológicos bíblicos e não ter mais sobre o que escrever do que ficar velho sozinho e escrever sobre a solidão. Talvez escreveria “Num mar de rugas solitárias”. Pois a coisa mais triste que pode acontecer para um escritor é ele deixar que a vida comece a escrever a sua história ao invés dele escrever histórias sobre a vida.

Acho que na vida o fluxo é a ilusão de felicidade e o contra-fluxo é uma tristeza ilusória. Mas no fim o que conta mesmo é a sensação térmica e não os graus celcius.

Ela sentindo o que estava para acontecer começou a falar já que eu não conseguia. A cada esforço que eu fazia para tentar dizer o que eu queria lágrimas escorriam dos meus olhos. Minha garganta fechava e a voz não saia. Tentei não escutar o que ela falava pois por mais que o homem seja malandro, a mulher que a gente ama sempre nos leva na conversa. Elas sabem que controlam o nosso coração e que nós somos uns bundões frente a elas. O que nos torna uma presa fácil a ser manipulada. “Olha, eu sei que estamos passando por um momento difícil. Para mim está sendo super difícil também. Mas eu te amo! Acho que quando a gente ama, a gente tem que se adaptar. Isso leva tempo. Mas acho que deveríamos tentar. Eu estou disposta a tentar. A gente está construindo uma história bonita. Talvez a gente possa ficar uma semana afastado pra pensarmos um pouco...“ dizia ela. Mas eu não queria pensar, pois se eu pensasse iria dar pra trás. E cada palavra que ela dizia aumentava mais o meu sofrimento em vê-la sofrer. Juntei minhas forças para me sentar na cama e acendi um cigarro para me encorajar, mas mesmo assim quase não emiti som ao falar que eu já havia pensado. Agora já não controlava minhas lágrimas e numa imensa covardia escondi meu rosto com minha mão direita e disse soluçando “não dá mais“. Agora ela começou a chorar também. Suas lágrimas eram negras como a música que ela tanto gostava. Eu quis abraça-la e dar todo conforto do mundo a ela, mas a dor que ela sentia era eu que estava lhe causando. Tentei abraça-la. Ela me empurrou e disse para eu ir embora. Pedi desculpa e ela respondeu “Vai embora. Eu preciso ficar sozinha.“

Ao sair da porta de seu quarto percebi que essa seria a última vez que eu estava saindo desse quarto onde dividimos nosso amor e nossos segredos. Que o abraço que eu tentei lhe dar poderia ter sido o último abraço, mas ele não aconteceu. Nem ao menos trocamos o último olhar e se tivéssemos trocado esse último olhar seria cheio de lágrimas. Lágrimas negras. Negra como a morte. Meu peito doía como nas noites de infância em que eu temia a morte.

Acho que nunca me arrependi tanto de uma atitude que tomei em tão pouco segundos após ela ser tomada. Mas não posso lhe dar um tiro no peito e segundos depois pedir desculpas e querer que a ferida se cure. Tinha que ir embora. Segui o fluxo descendo pela última vez aquela escada e deixando lágrimas pelo caminho. Passei pela cozinha sem olhar para a mesa para não sofrer com as lembranças das tantas vezes que jantamos ali. Desci o lance de escadas que dava na garagem e abri pela última vez esse portão. Talvez tenha sido a primeira vez que eu abri pois ela sempre abria e fechava o portão para mim. Tirei meu carro pela última vez e tive que fechar o portão para mim mesmo.

Acho que esse gesto simbolizava o que estava acontecendo. Fui embora chorando enquanto dirigia pensando nisso. Eu estava fechando a porta para uma história que estava começando. Por que não deixar as coisas rolarem naturalmente? A vida não é um livro para eu ficar fantasiando a história que eu quiser. Talvez eu devesse tirar férias e deixar que a vida escrevesse um pouco por mim. Quem sabe o tiro que eu dei não fora fatal . Mas a cicatriz sempre vai existir. Porém eu poderia fazer a volta e pegar o contra-fluxo dessa avenida para seguir o fluxo da minha vida.

Enquanto não me decidia o sinal ficou vermelho para mim e eu fiquei parado ali em cima da faixa de pedestres. Um sujeito com um buquê na mão se aproximou e perguntou “Flores pra namorada?“

Vitor Miranda
Enviado por Vitor Miranda em 24/04/2014
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