PROVA DE FOGO
Wilsinho Camargo sempre fora fascinado pelas paisagens do nordeste: praias de areias brancas a perder de vista, o mar verde em alguns cartões postais, azul em outros, palmeiras balouçantes (ele adivinhava) por brisas suaves (ele pressentia na pele) e o céu infinito, coalhado de nuvens ou completamente azul. Seu sonho sempre fora passear por aquelas paragens, tomar sol o dia inteiro, espreguiçar deitado na areia. Com a probabilidade de namorar uma morena das que via nas fotografias de sua enorme coleção.
Quando a oportunidade se apresentou, não titubeou. Já trabalhava na agência do banco , na ocasião, e foi quanto teve as suas primeiras férias que realizou seu sonho. E tendo passado uma quinzena na capital do pequeno estado nordestino, voltou, agora mais do que nunca, seduzido pelas paisagens, comidas e pela gente alagoana.
A nostalgia do mar, sentida pelos mineiros em geral, era acentuada no jovem. Quando viu pela primeira vez a extensão infinita de água e areia, o horizonte a perder de vista, sem nenhum monte, nada que limitasse a visão, não se conteve na sua admiração: Uai, que marzão besta, sô!
Voltou com uma idéia fixa na cabeça.
— Estou decidido: vou morar lá. Não tem lugar melhor no mundo.
— Deixa de bobagem, filho. Num tá vendo que seu futuro está aqui? Com esse emprego no banco poderá passar todas as suas férias nas praias, não carece abandonar a família, seus amigos. — O pai não compreendia a sedução que as praias claras e quentes exerciam sobre o filho. — Com seu gosto pela matemática, poderá continuar lecionando no colégio e fazer uma bonita carreira.
— Mas que nada, pai. Vou pedir transferência e tenho certeza de que vou conseguir.
Wilson fora, durante alguns anos, professor de matemática e geografia no Colégio de São Romão, da paróquia. Os modestos ganhos levaram-no a procurar outro meio de vida, que surgiu quando fez concurso e foi aprovado no Banco do Brasil. Agora, via que poderia realizar seu sonho máximo, transferindo-se para uma das agências na região do nordeste. Por isso, candidatou-se a vagas em diversas agências, todas situadas em cidades à beira-mar. Não precisou esperar muito tempo para obter o que pleiteava: apenas alguns meses após sua primeira viagem, foi transferido para a capital de Alagoas.
Foi fácil a adaptação do mineiro à cidade e à região. Deu-se bem logo de início, indo morar numa pensão, onde já residiam alguns colegas. A pensão de dona Raimundina era modesta e dirigida com competência e simpatia pela decidida viúva. A cidade ainda era simples quando Wilson chegou. Começava a década de 50, havia um ar de mudanças, estava sendo construída uma nova capital do país em Goiás e muita gente estava trocando o nordeste pelo centro do país.
— Bem que gostaria de ir também pra Brasília. — Dona Raimundina sonhava. — Não fosse pelo Liberato, que tem um emprego definitivo aqui, governo, eu ia mesmo.
Liberato era seu filho único e trabalhava no Banco do Nordeste. Era contínuo, mas com seu ordenado ajudava a mãe no equilíbrio da economia doméstica.
A pensão era a própria casa de dona Raimundina, adaptada para abrigar meia dúzia de rapazes, todos empregados em bancos ou repartições públicas. Caprichosa na manutenção da modesta casa, que mantinha muito limpa; competente na cozinha, onde fazia, ela própria, pratos saborosos da comida nordestina; cordial e educada no trato com seus pensionistas e com todos as pessoas, enfim, ela mantinha a casa sempre cheia.
— A pensão é só para rapazes. — Explicou para Wilson, assim que ele chegou. — Moça, aqui, só na sala de visitas. Nada de namoros no portão. Nos quartos, nem pensar.
Um modo de viver diferente. Clima diverso. Comidas exóticas. A tudo Wilson se adapta com facilidade. Logo fez amizade com os outros rapazes. Principalmente com Liberato, que sabia tudo a respeito da cidade. Era o guia de todos em qualquer situação. E porque conhecia também muitas garotas, era muito paparicado pelos pensionistas.
Por aquele tempo, nos bancos só se trabalhava à tarde. Pelas manhãs, Wilson ia à praia. Aos poucos, foi adquirindo uma tonalidade bronzeada, que lhe ficava bem: alto, loiro, olhos azuis, ele se destacava entre os amigos, todos morenos.
— Liberato, quem é aquela moreninha ali? — Wilson mostrou interesse por uma freqüentadora da praia.
— Ah, é a Elzinha. Vou te apresentar.
Apresentações feitas, ali na praia mesmo começou uma amizade, que logo se transformou em namoro.
Todos tinham namoradas e saíam juntos. Liberato tinha um xodó por uma garota esbelta, Zenilda, de longos cabelos e pernas bem torneadas.
Aos poucos, foram se conhecendo, e não demorou muito, Wilson estava como o peixe na água: era estimado por todos e as moças não lhe davam sossego. Elzinha era fogosa, e muitas vezes levou Wilson ao desespero, com atitudes que prometiam tudo mas, na hora H, nada concedia.
— Te cuida, camaradinha. — Avisou Liberato. — Ela quer é casamento.
Wilson arrepiou-se. Não estava a fim de se amarrar, a vida que levava era muito boa. Deu um jeito de acabar o namoro com Elzinha. Ficaria por uns tempos sem namorada. Elzinha, por sua vez, não se afastou do grupo, passou a flertar com Luiz Carlos, outro pensionista.
Wilson se destacava entre os do seu grupo. Logo ficou sabido na pensão que ele fora professor em sua cidade nas Minas Gerais. Liberato pediu-lhe ajuda.
— Sabe, vou fazer uma prova. Um concurso interno no banco, preciso sair dessa condição de contínuo. Você poderia me ajudar com a matemática?
Wilson acedeu. Pelo menos duas vezes por semana, sempre à noite, os dois sentavam-se à mesa da sala de jantar para revisões nos problemas que sabidamente seriam apresentados na prova. Aliás, eram três sentados à mesa. Zenilda, a namorada de Liberato, estava sempre por perto.
Enquanto Liberato, cabeça baixa, se esforçava para encontrar os resultados dos problemas, Zenilda dirigia a Wilson olhares lânguidos, insinuantes. A princípio, Wilson nada percebera, mas com a insistência, começou a desconfiar. Passado algum tempo, entretanto, teve certeza de que ela estava tentando seduzi-lo. Ficou na sua, manteve-se firme, não vou atrapalhar a vida do amigo e aluno. Inda mais agora, que ele deve concentrar-se para o concurso.
Após alguns meses, Liberato chegou com a notícia.
— A data do concurso foi marcada! Agora estamos na reta final.
— Então vamos apertar nos estudos. — Wilson também se entusiasmou. — Vamos fazer uma revisão geral.
Sabia que Liberato precisava estudar muito, pois era fraco nos números. Mas, com sua ajuda, iria dar certo. Passaram a estudar todas as noites. Zenilda sempre ali, junto. Os olhares cheios de significados na direção de Wilson.
Será que ela quer mesmo alguma coisa comigo? Wilson manteve a dúvida até uma noite em que, tendo sentado estrategicamente ao seu lado, Zenilda encostou-lhe a perna. Pensou que era acidental, mas ela continuou e parecia sentir um prazer no contato. Agora tenho certeza. Ela tá querendo alguma coisa comigo.
Manteve-se firme. Agora,não! Se Liberato ficar sabendo, vai ser ruim pra ele. Pode até perder o concurso.
Outra surpresa estava destinada a Wilson. Foi numa quinta-feira pela manhã. Liberato bateu à porta de seu quarto, pediu para entrar.
— Claro, vai entrando. — Wilson, ainda de pijama, estremunhado, não deixou de perceber que o amigo estava agitado, ansioso. — Que foi, aconteceu alguma coisa?
Liberato entra e fecha a porta do quarto, com exagerado cuidado. — Quero lhe pedir um favor. — Sentando-se na cama, mostra a Wilson um envelope pardo.
— Que é isso?
— Só falo depois que você jurar que não conta nada pra ninguém.
— Mas, do que se trata?
— Primeiro, jura manter segredo.
— Tá bom, juro, vá lá. — Wilson já começa a se preocupar. — Tem a ver comigo, com meu serviço?
— Não, Wilson. — A testa de Liberato poreja de suor. Os olhos mostram a angústia do rapaz. — Tem a ver com o concurso... — Hesita.
— Cara, vamos, desembucha logo!
— Olha, ontem chegou a correspondência com os testes da prova. O concurso vai ser no domingo.
— Isso a gente já sabia.
— Pois é. Aqui neste envelope estão as questões de matemática. Já abri com jeito.
Wilson fica alerta, de repente.
— Camarada, você endoidou? Abriu o envelope dirigido ao gerente? Quando ele souber, cê tá na rua.
— Psiu! Ninguém sabe. Hoje fui ao correio buscar a correspondência, tá sabendo? Na caixa postal. Como todos os dias. Peguei o envelope, desconfiei que era material do concurso. Trouxe aqui pra casa e abri no vapor da chaleira. Ninguém vai saber.
— E que é que eu tenho com isso?
— Me ajuda a resolver as questões? Tem muitas que não sei resolver sozinho.
— Tá louco, cara? Como é que vou fazer uma coisa dessas? Não, não posso. Pra falar a verdade, nem quero saber dessa nossa conversa. Vou fingir que não ouvi o que você me contou.
— Me ajuda, Wilson! Já vi que sem sua ajuda, não passo no concurso.
— Não e não. Por favor, agora sai do meu quarto. Tenho de me trocar. E hoje à noite vou sair, não tem estudo. — Wilson queria se ver livre daquela conversa, jamais se envolveria numa tal confusão.
— Acho que se eu pedir pro Wilson, ele te ajuda, sim. — Zenilda prontificou-se a conversar com o “professor” do namorado. No seu desespero, Liberato contara à namorada a sua proeza.
— Ele tá possesso comigo. Nem quer me ver mais. Disse que vai sair hoje à noite.
— Faz o seguinte. Me dá o envelope com esses testes. Hoje de noite falo com ele, antes dele sair da pensão. Tenho certeza de que ele vai atender meu pedido. Amanhã cedo eu lhe devolvo os testes, e você entrega na agência. Como se tivessem chegado de manhã.
— Será que dá certo?
— Claro! Ele é ou não é nosso amigo? Deixa comigo. Olha, pra você ficar bem tranqüilo, porque não vai a um cinema?
Zenilda sabia de sua capacidade em ajudar o namorado e de suas possibilidades em convencer o amigo a resolver as questões.
Postada na porta da pensão, aguardou a chegada de Wilson, que vinha direto do banco para o jantar. Pede para conversar com ele no seu quarto. Ao ver o envelope pardo nas mãos da moça, Wilson desconfia do que se trata.
— Não, a gente não pode...
— Não fala nada, por favor, aqui na porta não. Deixa eu te explicar no quarto.
Ocupada no serviço da cozinha e da copa, dona Raimundina não percebeu a entrada de ambos. Sem serem vistos, foram diretamente para o quarto do moço.
— Já disse que isto é uma loucura! — Wilson começou relutante, ao saber das intenções da moça, no intuito de ajudar o namorado. — Se nos descobrem...Agora já somos três envolvidos nesta trampa. Cê sabe, a mentira tem pernas curtas.
— Que é isso, Wilson? Você foi tão atencioso com o Liberato e comigo, durante estes meses!Eu sempre confiei em você, sempre quis lhe agradecer. Agora está na hora de ajudarmos Liberado. É a última ajuda.
Falam baixo, pois sabem que tratam de um assunto confidencial. E é num sussurro que Zenilda fala a Wilson:
— Nós vamos ficar eternamente gratos a você. E quando sou agradecida, sei recompensar quem me agrada. — Aproximando-se de Wilson, abraça-o demoradamente.
Wilson é pego de surpresa. Jamais pensou Zenilda passaria dos olhares lânguidos aos gestos de sedução, com tamanha rapidez. A resistência se desvanece ao sentir o corpo quente e insinuante da moça, colado ao seu.
— Não sei se posso...
— Claro que pode. Vamos, senta aqui, vamos ver os problemas. Depois, conversamos.
Abrindo com destreza o envelope pardo, ela apresenta as folhas com as questões de matemática. Wilson pega um caderno, arranca algumas folhas e começa a resolver os problemas, freneticamente.
— Calma, não precisa pressa. Temos todo o tempo do mundo.
No meio do trabalho, batidas à porta.
— Wilson, a comida tá esfriando. — É Dona Raimundina, preocupada com o atraso do pensionista à mesa do jantar.
— Não me espera, não. Hoje vou jantar fora. — Mente o rapaz, sabendo que aquela situação vai lhe tomar bastante tempo.
Após quase uma hora, Wilson termina a ingrata tarefa. Uma dezena de folhas de caderno rabiscadas apressadamente, com as soluções de todos os problemas matemáticos.
— Pronto! A burrada já está feita. Só desejo que tudo fique mesmo em segredo. — Continua falando aos cicios. Coloca tudo dentro do envelope e entrega à moça.
— Puxa, Wilson, você nem sabe como lhe sou agradecida. — Levantando-se, abraça novamente o rapaz e, inesperadamente, beija-lhe na boca. Um beijo que é muito mais do que agradecimento , é pura sedução.
Já passavam das nove horas. A pensão, mergulhada quase que em total silêncio. Apenas os ruídos familiares e o som abafado do rádio no quarto de dona Raimundina: ela escuta mais um capítulo da novela.
Ainda assim, Zenilda e Wilson são cuidadosos. Quase não falam e agem discretamente. O que não impede que a moça manifeste com muita força e carinho toda a gratidão pelo favor recebido. A luz apagada, a janela fechada, nenhuma testemunha daqueles momentos de volúpia e sofreguidão.
A saída de Zenilda, mais do que furtiva, é uma escapada silenciosa. Consegue sair pela porta da frente, sem que ninguém percebesse sua evasão. Caminha apressada. Só estarei segura ao dobrar a esquina. De lá pra diante, ninguém me descobre,ninguém vai saber que vim da pensão. Está ofegante. Tanto pelo receio de ser descoberta quanto pelas emoções experimentadas no quarto de Wilson. Ansiosa, chega à esquina e caminha decidida, virando à esquerda.
Topa com Liberato, de pé num desvão de porta mal iluminado. Assusta-se.
— Oi, Zenilda! Deu tudo certo? — A entonação na pergunta não deixa dúvidas quanto ao sentido que Liberato quer dar à pergunta.
Zenilda percebe. Sente que seu êxito foi passageiro. O namorado não fora ao cinema, ficara por ali e sabia de tudo.
— Oi, Liberato. Tá tudo aqui no envelope. — Na sua afobação, deixa o envelope cair. Que, ao cair, abre-se. As folhas se esparramam pelo chão. Ajoelha-se para ajuntar tudo.
— Pode deixar. Precisa catar não. — Manifesta sua raiva em frases rápidas e curtas. — Isso aí num vale mais nada.
Passando por Zenilda, Liberato deixa-a ali, ainda de joelhos, e se encaminha em direção à praia.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 5 de julho de 2002.
Conto # 167 da série Milistórias