O TERRÍVEL IVÃ
A tempestade desabou sem aviso prévio. A chuva desceu em lençóis d´água, atrapalhando a visão do motorista do ônibus. Raios clareavam a noite e trovões estilhaçavam os tímpanos dos passageiros amedrontados.
— Bah, que chuva besta! Com este temporal, só vamos chegar lá pela meia-noite. — A preocupação do motorista Silvio Laureano, em vez de acalmar, mais assustou os passageiros. Olhos atentos no leito da estrada, os limpadores de pára-brisas não agüentando jogar a água de um lado para o outro, as luzes mal atravessando as cortinas de água, tudo tramava para o atraso da viagem.
O ônibus estava quase lotado: apenas dois lugares permaneciam vazios, no fundo. Havia saído de Porto Alegre há quatro horas, a tarde ainda clara. A estrada, rumo ao sul, desenrolava-se por planícies e coxilhas, atravessando plantações e terras de pastos, cortando sangas sobre pontes rústicas.
— Vá com calma, seu Laureano. Todo cuidado é pouco. — Um passageiro sentado na poltrona mais próxima do experiente motorista procura tranqüilizá-lo. — Com esse tempo, melhor chegar atrasado do que ficar encravado na estrada.
Laureano, chofer com mais de trinta anos de experiência, sabe que temporais como aquele, no veranico de maio, costumam ser terríveis. Não é à toa que mantém, na caixa de ferramentas, as correntes para os pneus que podem safar o veículo dos atoleiros mais fortes. Tomara que não seja preciso colocar as correntes. Com essa água toda, será um inferno. Segura a grande roda da direção com firmeza, evita dar solavancos, mas não consegue safar-se dos buracos na estrada de terra, escondidos pelas poças d´água ou pela enxurrada que passa sobre o leito da estrada.
Ivã ocupa uma poltrona no meio do ônibus. Está com medo. Jamais vira um temporal assim tão repentino e forte. Receia principalmente por estar longe da cidade, de seu habitat natural. Nascido e criado na capital, só mesmo por um motivo de maior importância sairia da grande cidade para o interior. O motivo importante é sua saúde.
— Você tem de descansar, ir para um local tranqüilo. Cuidar dos seus pulmões e fortalecer. Esta vida de correrias e mais o seu esforço nos estudos não vão ajudar em nada.
Recebeu o conselho do doutor Epaminondas com reservas. Mas seu pai foi taxativo.
— Ouve a voz da experiência. Se o doutor está dizendo, é porque é. Deixa teus estudos, será por pouco tempo, um ano, no máximo. Quando voltares, terá teu lugar garantido. Melhor um estudante vivo do que um ex-futuro farmacêutico morto.
— Mas, que modos são estes de falar com o filho, Carlos? Deus que me livre do que estás dizendo! — Dona Quitéria foi mais prática no aconselhar Ivã, o filho único do casal. — Tu vais para Coxilha Verde, não fica tão longe, e hospeda-te na fazenda de Bartolo. Escrevo uma carta para o mano e tudo se arranjará, tenho certeza.
— Vou por seis meses. Não posso nem quero deixar meu emprego e os estudos.
Ivã apalpa, no bolso do paletó grosso a carta escrita pela mãe ao irmão, dono de estância que Ivã não conhecia. A bem da verdade, nem mesmo o tio, a tia e os primos ele conhecia.Somente os havia visto há uns dez anos.A família esteve em Porto Alegre acompanhando a tia Afonsina em sua consulta a um oculista. Sabia que seria bem recebido, mas duvidava muito se iria gostar de morar em uma propriedade rural, longe de todo o conforto a que estava acostumado na capital.
Seus pensamentos foram arrastados, durante alguns momentos, pelas recordações dos últimos meses de sua vida: estudante da Faculdade de Farmácia, trabalhava à noite como prático, na Farmácia Central do senhor Hugolino Cardoso. Dedicado tanto aos estudos como ao trabalho, deu de emagrecer repentinamente e uma tosse insistente começou a perturbá-lo. O diagnóstico do doutor Epaminondas foi a determinante de sua mudança.
— Estás fraco dos pulmões, meu jovem. A pneumonia deixou seqüelas, agora careces de repouso, descanso, respirar ar puro, fazer caminhadas ao ar livre. Qualquer coisa longe dessa fumaceira da cidade.
Uma guinada na direção, um solavanco mais forte, tiram Ivã de seu devaneio.
— Arre, já estamos chegando! — O motorista mostrava-se animado, conseguira trazer o veículo e os passageiros sem maiores problemas até o ponto de chegada de Coxilha Verde. — E só atrasamos meia hora, tchê!
Ivã olha pela vidraça, nada vê. Pega sua maleta de mão, mais uma sacola com sanduíches e bolachas, e acompanha os passageiros, descendo do ônibus. A chuva continua tão forte como na estrada. O ponto de parada do ônibus é sob um barracão rústico, mal iluminado, com alguns bancos e um guichê para venda de passagens. Um rapaz, lépido, vem ajudar os passageiros na retirada de suas malas do bagageiro. A mala de Ivã está molhada de um lado.
— Onde posso encontrar um quarto para passar a noite? — pergunta ao rapaz.
— Logo aí em frente tem a Pensão de dona Marcionilia. Ainda está aberta, esperando a chegada de ônibus.
Ivã atravessa a rua, sempre debaixo da chuva. Chega ensopado do outro lado e adentra-se pela única porta aberta e iluminada que vê. É a pensão. Inda bem! Não agüentaria ir muito longe com esta mala e a sacola. O peito arfa e a tosse o incomoda.
O dia seguinte amanhece lavado: o céu muito azul, sem uma nuvem sequer. Um ventinho frio anuncia o fim do veranico de maio e a continuação da friagem do outono, já cedendo lugar ao inverno. Ivã se agasalha o quanto pode. Mesmo assim, sente frio à mesa do café da manhã.
— Onde encontro uma condução para chegar à Estância do Potro Bravo? — Pergunta à menina que lhe serve o café.
— Tens que tomar um carro que parte à tarde, pelas três. — Ela demora-se olhando o jovem muito moreno, de cabelos negros, porte ereto e de olhar penetrante. Que guapo!
— Obrigado. Como te chamas?
— Gladi s. Mamãe é a dona da pensão.
Um senhor que está à mesa ao lado se inclina e entra na conversa entre Ivã e a garota:
— Estou saindo para a Fazenda do Arroio Grande, que fica além do Potro Bravo. Se queres, dou-te uma garupa no meu jipe.
Chegou na estância dos tios pelas dez da manhã. Na casa, apenas a tia Afonsina.
— Querido Ivã! Como cresceste! Vem, fica à vontade. Deixa a mala aí, depois a levas para o quarto. Senta-te cá, tomas um café?
Ivã se sente desconfortável, a tia é quase uma estranha. Mas seus sorrisos e a vontade de agradar deixam o jovem à vontade. Pensava-a mais idosa, mas nada é como se pensa. Alta, bem mais alta que Ivã, cabelos e olhos muito pretos, os braços emergindo das mangas arregaçadas de seu vestido de trabalho, mãos delicadas e espertas no colocar xícara e pires, um prato com pães e uma travessa com roscas, o bule de café e uma jarra com leite.
— Talvez prefiras uma cuia de erva?
— Não, obrigado, café com leite vai bem. Não te preocupes.
Daí a pouco chegam o tio, os primos e Raquel, a prima. O fazendeiro aperta Ivã num abraço forte. Homem de seus dois metros, grande, rosto queimado, as bombachas metidas em botas de cano alto, joga o chapéu sobre uma cadeira ao chegar. Fala alto, como se tivesse na pastaria, gritando com seus auxiliares.
— Mas, então, guri, como estás? Que novidades me contas de Carlos e Quitéria? — Sem esperar respostas, abre o envelope e lê a carta enviada pela irmã.
Os primos são Heraldo e Benito. Trabalham com o pai, cuidando da estância. Como o pai, têm a tez queimada, usam as roupas próprias para o trabalho da propriedade: criação de carneiros, plantio de arroz, algum gado de leite e de corte. Mais tarde, Ivã saberá que Heraldo é o mais velho, tem vinte e quatro anos, e Benito tem a mesma idade que ele, Ivã: vinte e dois anos.
A mocinha fica de lado e a mãe chama-a para a mesa.
— Raquel, lembras-te de Ivã?
Ela se aproxima, cumprimenta o rapaz com formalismo. Alta e morena como os pais e os irmãos, tem a face rosada e olhos vivos. Os cabelos estão amarrados num coque sobre a nuca, deixam em destaque o rosto, os grandes olhos amendoados e negros, a boca vermelha. Séria, apenas ergue os olhos para Ivã e se dirige à mãe. Barbaridade, que família de gente grande, pensa Ivã.
— Posso pôr a mesa para o almoço?
Tal qual Ivã pensara, a vida na estância se revela de uma monotonia sem sentido.Tentou acompanhar o tio e os primos nas lides do campo, mas desistiu na primeira semana. Cavalgar e ficar por longas horas exposto ao sol e ao vento gelado vindo do sul não era, definitivamente, seu fraco. Passou a ficar nos arredores da sede, ajudando a tia e Raquel no que possível fosse. E por longas horas dedicava-se aos seus livros de estudo, no afã de não se esquecer do já estudado e no aprendizado do que ainda não havia visto nas aulas da faculdade.
— Tens de fazer exercícios, meu rapaz! — A tia incitava-o a sair da casa nas tardes quentes. — Vai caminhar um pouco. Ou, se queres, usa a bicicleta de Benito, sai por aí a pedalar.
Na primeira saída com a bicicleta, pedalou alguns quilômetros pela estrada plana, passando por areais com dificuldade, mas conseguindo fazer algum exercício. A volta, entretanto, foi terrível. Um vento forte começou a soprar, dificultando o pedalar. Os longos trechos de areia também opunham resistência. Estava à beira da exaustão, ainda bem longe da estância, quando uma camioneta parou ao seu lado.
— Então, muchacho, queres uma garupa? Põe aí em cima tua magrela.
Semana após semana, Ivã sentia-se cada vez mais aborrecido. Nem mesmo os dengos da prima conseguiam animá-lo. Dengos que foram se transformando num jogo de sedução. O rapaz não queria, mas quando se deu conta, estava de flerte com Raquel.
Apavorou-se. Se a tia ou o tio notarem qualquer coisa, estou perdido! Não, não posso namorar a moça. Ela é linda, mas impossível para mim.
Raquel, catita, procurava agradar o primo em tudo, e por duas vezes insinuara-se tentadoramente, no galpão de reatas e ferramentas, não muito longe da casa-sede. Ele resistiu bravamente.
Até que tomou a decisão. Iria deixar a estância, desejava ficar na pequena cidade. Os tios não gostaram da idéia.
— Mas, guri, que hão de pensar minha irmã e meu cunhado? Que não cumprimos com nosso dever de hospedar-te!
— Vou ficar te esperando, tenho certeza de que voltarás! — Raquel não se conformava em perder Ivã, que já era o seu “grande amor”.
— Nem penses em tal! Não sou homem para ti. Tens de encontrar um jovem que goste desta vida do campo. Eu não agüento, tenho de terminar meus estudos, voltar para meu emprego.
— Se não voltares, não sei o que farei... Me atiro no poço da sanga, e sabes bem que não sei nadar!
— Que loucura, Raquel! Tens de me esquecer, é o melhor para ti.
De volta à pensão de dona Marcionilia, Ivã reorganiza a vida. Caminhadas pelas manhãs de sol frio, bem agasalhado, conforme recomendado pela mãe. Passa as tardes no quarto, estudando. À noite, permite-se ficar na sala de visitas, em conversas com os freqüentadores da pensão, viajantes em trânsito, na maioria.
Não desejando ser um peso financeiro para o pai, procura trabalho. Encontra-o como professor de inglês no Colégio Santa Úrsula. As aulas, pela manhã, são para as quatro classes do curso ginasial.. Classes pequenas, de quinze a vinte alunos, o que torna fácil sua tarefa.
— Mamãe quer recordar o inglês que aprendeu no colégio. Tu podes dar aulas particulares para ela? — O convite veio acompanhado de um sorriso meigo e olhar brejeiro de Iolanda. Ivã não teve como recusar uma visita à mãe de Iolanda, dona Clarisse, que estava realmente a fim de recordar um pouco de inglês. Por puro capricho. Casada com o Dr. Zenóbio, delegado de polícia, não sabia como preencher o ócio de sua vida e pareceu-lhe que ter aulas particulares com o simpático Ivã seria algo para quebrar a monotonia de suas tardes vazias.
Ivã não percebeu, de imediato, a armadilha que lhe fora armada. Ao mesmo tempo que dona Clarisse demonstrava inteligente, interessada no estudo, era por demais afável e atenciosa. A filha, Iolanda, permanecia por perto, ouvindo e por vezes, participando das aulas. Uma afeição surgiu entre Ivã e a jovem estudante, sob os olhares comovidos da mãe. Afeição que se transformou rapidamente em namoro.
As noites de Ivã eram agora passadas com Iolanda, na confortável sala com lareira da casa do delegado. Discretamente, a mãe foi deixando os namorados à vontade. Iolanda logo se revelou mais do que brejeira, como Ivã sempre a tinha em conta. Dos afagos de mãos passaram aos beijos, que punham um silêncio suspeito na grande sala aquecida. Beijos de enlouquecer, as bocas procurando-se avidamente, as línguas se tocando, uma ânsia de amor e de desejo.
Aconteceu no final do ano a eleição para prefeito, vice-prefeito e vereadores. O candidato vencedor pertencia à ala jovem do partido: Dr. Armando Stiffer tinha apenas trinta e dois anos ao ser eleito, e sua administração prometia ser completamente diferente de tudo o que a pequena cidade de Coxilha Verde conhecera. A medida que suscitou mais polêmica foi a nomeação de Ivã para secretário geral da prefeitura. Por ser muito jovem, apenas vinte e dois anos, e, pior, por ser uma pessoa que sequer era cidadão verde-coxilhense, sua nomeação foi um “escândalo”, conforme o semanário de oposição afirmava em editorial viperino.
Ivã não se intimidou. Sabia que o preconceito, na verdade, não era contra o fato de ser alienígena nem jovem, mas sim, tinha a ver com sua cor. Apesar dos lábios finos e nariz delgado, sua tez escura denunciava a ascendência negra. Mas aceitou o convite do amigo Armando para ajudá-lo na prefeitura. Mais por espírito de enfrentamento do que por qualquer outra coisa.
Entretanto, a nomeação veio interferir diretamente no seu namoro com Iolanda. O que começara com simples toques de mãos e beijos enlouquecedores, evoluíra para um romance abrasador. Tanto a namorada como os pais esperavam que o namoro resultasse em noivado e casamento. O que estava totalmente fora das cogitações de Ivã. Aliás, Ivã nem compreendia como pudera perder o controle da situação, ele que sempre permanecera fiel ao seu desiderato inicial, de permanecer na pequena cidade por alguns meses, um ano no máximo. Os acontecimentos, porém, evoluíram de modo diferente ao que havia planejado, e agora estava num beco sem saída.
Não iria se enterrar em Coxilha Verde pelo resto de sua vida. Também não queria assumir encargo de família antes de se formar. Aliás, se casasse, dificilmente teria condições de retornar à faculdade. Decidiu que a sua nomeação para secretário da prefeitura seria um bom motivo para romper com Iolanda.
— Se me deixares, no dia seguinte podes enviar flores para meu enterro. Me lanço do trapiche nas águas da lagoa. — Iolanda não iria desistir de seu namorado quase-noivo e futuro marido.
Ele se apavorou. Continuaram nos encontros, mas Ivã notava diferença no relacionamento. Iolanda tornava-se a cada dia mais sedutora, permissiva, as intimidades crescentes, a resistência de ambos esvaecendo-se a cada encontro. Dona Clarisse desdobrava-se em agrados ao namorado enquanto que doutor Zenóbio tornou-se mais frio, comedido nos cumprimentos. Ivã sentiu a força do complô para seu seqüestro sentimental.
— Não dá mais, Iolanda. Temos que terminar. Volto para Porto Alegre, tenho de prosseguir minha vida. — O aviso soou como ultimato à jovem, que desabrochara, ao fim de mais de ano de namoro, em belíssima mulher.
— Não agüento viver sem ti. Me mato.Tu serás o culpado.
Ivã sabia que, por mais dolorosa que fosse a separação, Iolanda nunca chegaria a tal extremo. Ameaça que não passa de palavras ao vento.
Após renunciar ao cargo de secretário, prepara-se para a viagem de volta. Sua saúde, motivo único de sua estada na cidade, melhorara consideravelmente: nunca mais sentiu a fraqueza anterior, cessaram os acessos de tosse. Ao fazer as malas, relembra os dois anos que passara na cidade. Período muito além daquele determinado para si mesmo, quando deixara a capital. Mas, enfim, coisas aconteceram além do planejado e esperado. Por pouco, não me amarrei no casamento.
Iolanda ainda o procurara na véspera, tentando demove-lo da decisão.
— Pensa em mim. Que serei, depois deste namoro de mais de ano? Vou ficar um trapo, nunca mais vou encontrar ninguém igual a ti. Te amo, Ivã. Promete-me que vais me escrever.
Ivã prometeu, sabendo que não iria cumprir.
Batidas à porta de seu quarto. Abre. É Gladis.
— Oi, Ivã! Já te vais?
— Parto hoje no carro das quatro da tarde.
— Quero te falar antes de partires, posso?
— Quer entrar? – Ivã escancara a porta.
— Não, aqui não. Pode ser na praça, depois do almoço?
— Claro. No banco perto do coreto, tá bem?
Sentado no banco, perto do coreto, Ivã espera. Que será que essa menina quer comigo? Talvez uma encomenda para algum parente na capital. É, só pode ser isso. Mas poderia ter me entregado lá na pensão, não precisava marcar encontro na praça. Ivã a vê se aproximando, caminhando elegante pela alameda central da praça. Num vestido azul, muito rodado, ela passa sob as árvores, as sombras e a luz do sol entremeando-se, destacando os longos cabelos loiros que faíscam sob a luz, revelando, pouco a pouco, à medida que ela se aproxima, o porte altaneiro e o sorriso meigo.
— Oi, Ivã.
— Oi, Gladis. – Ele se levanta, convidando-a a sentar-se.
— Queria ter esta conversa longe de mamãe.
Ivã percebe um arfar do colo da moça, deixado à vista por generoso decote do vestido. Puxa, como se transformou. Nem parece a mesma menina que vejo todos os dias na pensão.
— Vim te explicar uma coisa...
— Podes falar. Se for algo em que puder te ajudar.
— Quero te dizer do quanto gosto de ti.
Ivã se surpreende. Epa! Agora, não! Justamente no último momento! Correndo o olhar, descobre que a menina Gladis crescera, tornara-se uma jovem esbelta, elegante, linda de morrer. Aquela menina simples que vira na sua primeira manhã na pequena cidade, tornara-se uma moça muito bonita, sem que ele percebesse. A convivência diária, a camaradagem, a amizade parece ter toldado sua visão. Ele vê agora, de repente, diante de si uma bela mulher, vestida de azul, declarando-lhe amor.Durante os últimos anos, deixara de acompanhar o crescimento, o desabrochar da linda flor.
— Mas...Gladis, por que essa confissão agora?
— Sempre gostei de ti, desde o primeiro momento em que te vi. Mas tu jamais prestaste atenção, sempre com uma e outra namorada. Com seus livros... seu trabalho.
Ivã ficou sem palavras. Que faço? Gladis está realmente linda, mas não posso, não quero me envolver. Vou-me embora para não voltar.
— Estou sabendo que rompestes com Iolanda. Se queres, acompanho-te até o fim do mundo. Sou tua, sempre pensei em ti, nunca tive namorados.
— Gladis...é que eu... Não posso prometer-te nada.
— Não precisa prometer. Leva-me contigo. Estou preparada.
Ivã nota os lábios carnudos bem pintados com pálido batom. Os olhos brilham.
— Mas... e tua mãe... a pensão?
— Está tudo arranjado.
— Não, Gladis, não posso. Estás sendo sincera e mereces saber toda a verdade. Tenho de terminar os estudos. Cuidar da minha saúde. Não desejo enganá-la com promessas e...
— Se não queres me levar, fico te esperando.
Num átimo, ela se levanta. Ele também se ergue. No momento de maior enlevo, ele é abraçado pela moça, que se separa repentinamente.
— Tenho de ir. Lembra-te, estou te esperando.
Ivã fica pasmo, paralisado. Não tem o que responder, enquanto Gladis se afasta.
No ônibus da tarde, Ivã ocupa assento ao lado da janela. A estrada serpenteia por campos verdejantes, prados, coxilhas. O olhar do moço nada vê. As lembranças tumultuam-lhe o pensamento. A declaração de Gladis, nos últimos momentos de sua permanência na cidade, causou um impacto emocional sem paralelo em sua vida. Um turbilhão de emoções, sentimentos, sensações que nunca sentira antes, nem mesmo quando abraçava e beijava Iolanda. Descobre que fora extremamente insensível com todas as mulheres de sua vida, principalmente com Gladis. Ignorá-la durante todos estes anos fora uma cegueira sem tamanho, uma crueldade sem conta.
O barulho de algo explodindo sob o veículo assusta Ivã. Seus pensamentos se dissipam. O motorista avisa aos passageiros.
— Rebentou o pneu! — Ao mesmo tempo, encosta o ônibus no terreno plano ao lado da estrada. Os viajantes descem e ficam de conversa ao redor do motorista, trabalhando rapidamente na troca do pneu.
De longe, avistam uma nuvem de poeira acompanhando um veículo que vem na direção oposta. Aos se aproximar, verifica-se ser um jipe que pára ao lado do grupo de passageiros.
— Precisas de ajuda, tchê? — pergunta o velho, na direção do jipe.
— Não, obrigado, já tou terminando. — Agradece o motorista do ônibus, sem deixar o trabalho.
Ivã, ainda sob o torvelinho emocional, aproxima-se do velho no jipe:
— Tens lugar para um no seu jipe?
— Claro. Te acomoda aí.
Ivã entra no ônibus, pega sua maleta de mão, e pede ao motorista do ônibus que lhe dê a mala grande, acomodada no bagageiro.
— Mas, tchê, vais voltar para Coxilha Verde?
— Sim. Tenho um assunto que ficou pendente, preciso resolver.
Coloca as malas na parte de trás do jipe e senta-se ao lado do velho. Num sorriso largo, acena para o grupo de passageiros. De repente, sente-se invadido pela maior felicidade.
A garota da pensão não esperaria mais em vão.
<><><>
Antonio Roque Gobbo
Belo Horizonte, 14 de janeiro de 2002-
CONTO # 137 DA SÉRIE MILISTÓRIAS