TEMPERANÇA

Cheguei em casa cansado do trabalho, abri a porta, joguei as chaves sobre a mesinha de centro tirei meus sapatos e os deixei perto do sofá. Sentei-me, ou melhor, esparramei-me de costas sobre o sofá e fiquei em silêncio, olhos fechados. Comecei pensando no meu dia de muito trabalho, assuntos pendentes que ficaram para serem resolvidos para depois, banco, loja, funcionários, acerto de caixa, IPTU...

Quebrando o silêncio, vinha da cozinha o barulho que Marta fazia, mexendo com panelas: Uma tampa sendo colocada, o fósforo sendo riscado, vasilhas sendo guardadas...

Um cheirinho bom de comida invade minhas narinas, mas permaneço imóvel apenas apreciando a sensação de meu momento família que me faz tão bem. Saber que Marta, uma desconhecida até dois anos atrás, agora faz parte do meu mundo me transtorna, me transforma cada dia mais -justo eu, o mais convicto dos solteirões de cidade-. Se soubesse que seria tão bom ser cuidado por uma mulher e ter oportunidade de cuidar dela, certamente teria quebrado minhas “ideologias” há muito tempo.

Mas e Marta? Como ela administrava tudo isto? Como ela, tão doce, tão jovem (com menos de 30 anos e eu um cinquentão), tão linda, tão vivaz... tão apaixonante e silenciosa. Por mais que eu tente tirá-la do seu mundo de silêncios, mais ela se faz enigma e timidez. Como será que ela me percebe? Um homem que ama, ou um amigo mais experiente que sabe atiçar seus desejos e afetos?

Perpassam dúvidas que me tiram a tranquilidade e isto é perceptível nas contrações que dominam meu rosto... Mas continuo deitado, tentando controlar meus questionamentos. Amo-a demais... Meu Deus, como a amo! Não saberia mensurar se eu me sentiria tão feliz, caso estivesse com qualquer uma de todas as mulheres com quem convivi. Só de pensar nessas outras, sinto um quê de estar traindo-a... Loucura boa, isto tudo que estou vivendo.

Mas, e ela? Marta sempre fora extremamente silenciosa; não sei entender se por timidez ou por puro recato, ou ainda por apenas querer viver mais e analisar menos o nosso envolvimento. De qualquer forma, sempre me incomoda o seu silêncio, sempre me sinto inseguro ante o seu silêncio. Será que estou sendo um bom companheiro? Estou transmitindo-lhe a paz e a segurança que o homem sempre deve proporcionar à mulher? Não sei... Não sei!

Sei que minha amada percebeu minha chegada, pois sempre faço questão de me anunciar com uma acelerada mais forte no carro, com um coçar na garganta, procurando um pigarro que nunca existiu, jogando com estardalhaço as chaves sobre a mesinha, me jogando indolente sobre o sofá... Invariavelmente nesta ordem. Resposta: o mesmo indecifrável silêncio que nem os nossos mais íntimos momentos conseguem quebrar.

Apesar de ser alta para os nossos padrões e fora das minhas preferências de até então, Marta parece uma menininha frágil querendo colo, querendo afeto, querendo proteção... Acho que foi isto que me atiçou, que me cativou. Sua voz límpida, perfeita, seu virar a cabeça para o lado e para o alto quando se encabula, seu olhar olhando por dentro me desnorteiam a cada momento. Mas e Marta?...

De repente, um som um pouco diferente chega até meus ouvidos e quebram meus devaneios. Seria um fungar típico de quem está chorando? Fico atento e o som se repete. Num átimo fico de pé e caminho indeciso rumo à cozinha. Marta está de costas para a porta e de frente para a bancada. Vejo que está compenetrada em fazer algo, pois seus ombros se movimentam constantemente e vejo também os movimentos de seus antebraços.

Paro por ali e fico quieto por alguns momentos, na intenção de desfazer a certeza de que ouvira seu fungado de choro. Marta continua se movimentando de costas para mim. Fecho os olhos para melhor absorver a essência da presença dela em minha cozinha, em minha casa, em minha vida...

Novo fungado! Chamei seu nome tão baixo para não assustá-la que ela sequer ouviu... acho!

De vez em quando seu braço se ergue e ela passa as costas da mão pelo rosto, caracterizando o gesto de quem está limpando olhos e nariz. Não me contenho!

Lívido e exangue, aproximo-me e a abraço por trás. Ela se aninha em mim, mas não se vira... Continua parada. Eu a aperto mais ainda e os seus cabelos em meu rosto, mais a quentura de seu corpo contra o meu, me mostra o quanto quero e preciso ser feliz ao lado dela... Com ela. Preciso dela mais do que tudo... Preciso ser o tudo dela. Mas aquele choro me incomoda. Ela jamais demonstrara qualquer tipo de insatisfação desde que veio para esta casa. Que estava acontecendo?

Sussurrei-lhe no ouvido aquela que seria eternamente a forma com que eu a trataria:

_Minha AdorAMADA! Que está acontecendo? Por que está chorando?

Senti seu corpo tremer de leve e o seu pescoço se arrepiar ao contato do meu respirar. Ela se encolhe mais ainda e ficamos ali por um bom tempo, imersos em um silêncio absoluto.

_Oh, meu Deus, como a amo! -me gritava a alma.

Suavemente coloquei as mãos em seus ombros e fui pressionando de leve para que se virasse para mim. Estava com medo de ver seus olhos lacrimejando e temia também que ela, por fim, destravasse todo o seu mutismo, lançando sobre mim a minha pior tragédia pessoal, do tipo “não estou feliz e quero sair de sua vida”. No entanto, continuei virando-a para mim. Ela aceitou minha pressão e se virou lentamente, cabeça baixa. Peguei seu queixo e abri seus cabelos caídos sobre seu rosto, como uma cortina. Notei que ela sorria, um sorriso lindo como nunca sorrira antes. Passou a gargalhar muito e se espremia contra meu corpo. Colocou sua face contra meu peito e continuou a dar risadas incontidas. Ergueu a mão esquerda lentamente e esfregou em meu rosto uma cabeça de cebola já pela metade...

... Fizemos amor ali mesmo, no balcão da cozinha.

Paulo Pazz
Enviado por Paulo Pazz em 03/04/2014
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