A MENINA DO PALACETE AMARELO
A campainha lança seus sons suaves na tarde quente. É agosto e o ar está carregado de fumaça. O vento constante levanta a poeira do chão, os redemoinhos aparecem aqui e ali, com freqüência assustadora. Se a gente jogar um pedaço de sabão dentro do redemoinho, o capeta aparece. Só em pensar nisso, Daniel se arrepia. Nos seus onze anos acredita piamente em tudo quanto é crendice. Principalmente se é a vovó Bia quem conta, pois ela tem um ar de segurança que dá certeza a tudo o que diz.
De pé ante a porta do enorme palacete amarelo, Daniel esfrega um olho, que porcaria, entrou cisco, logo agora! Do alto do sobrado ouve a voz de Dona Gilda.
— Darlene, atende a porta, estão tocando a campainha.
— Tou indo, mãe.
Daniel treme de emoção ao ouvir a voz de Darlene, já descendo a escada. Quando ela abre a porta, o cisco já saiu do olho, e a visão da menina deslumbra e emudece o garoto.
— Ah, é você de novo, Daniel !
De pé em frente à porta, a luz da tarde iluminando pelas costas, Daniel permanece mudo. Deslumbrado, pensa: Puxa, ela é mais bonita sem o uniforme da escola. Darlene vê o garoto magro, muito loiro, os cabelos despenteados. A cara é coberta de sardas. Espigado, a roupa mal ajeitada no corpo, os sapatos empoeirados.
— Que é que você quer, Daniel?
— Ah! Vim lhe devolver a caneta que você me emprestou na classe, esqueci de lhe entregar. Trouxe também algumas laranjas, lá em casa tem um pé carregadinho.
Desajeitadamente entrega-lhe o saquinho de papel com as laranjas. Procura no bolso da calça a caneta-tinteiro de Darlene.
— Pode pôr a caneta ali na mesinha. — Darlene, com as mãos segurando o saquinho, afasta-se da porta, deixa Daniel entrar.
— Sabe, eu queria também recordar aquele ponto de matemática com você. Não entendi bem a explicação da dona Cidinha.
Darlene compreende. O Daniel tá querendo alguma coisa. Que garoto chato!
— Tá bom, senta aí na sala. Vou ao meu quarto pegar o livro de matemática e o caderno.
Puxa vida, que palacete bonito! Parece casa de filme. Acanhado, Daniel senta-se na cadeira desconfortável, fica todo empertigado. Num minuto Darlene está de volta. Traz o livro de matemática, um caderno e o estojo com muitos lápis, borrachas e apontador.
— Então, o que é que você quer rever? — Darlene tem pressa, pois tem de se aprontar para a festa da noite.
— Aqueles problemas de frações. Não entendi nada. — É invenção de Daniel, ele entendeu sim, mas tinha que inventar uma história para ficar alguns momentos mais com Darlene.
São colegas de classe, alunos de Dona Marocas no quarto ano do curso primário. Darlene é a garota mais desenvolta da classe. Inteligente e aplicada, é a primeira nos gráficos mensais de classificação. Daniel também é inteligente, mas não se esforça muito, distrai-se com facilidade, principalmente olhando para as carteiras das meninas, procurando cruzar seu olhar com os olhares das colegas. Neste último ano em que freqüenta o grupo escolar ficou gamado por Darlene e usa todos os estratagemas para chamar-lhe a atenção.
Para a menina de onze anos completados em março, Daniel é um chato que vive aparecendo na sua frente sob qualquer pretexto. Agora, deu pra ir à sua casa. Toda semana quando menos ela espera chega Daniel. Os pretextos para as visitas são vários. Um dia é a devolução de um objeto que ele pega na carteira dela, por empréstimo, e, de propósito, esquece de entregá-lo de volta durante a aula. Outras vezes, traz uma revista, um gibi ou um livrinho de histórias que deixa com Darlene por empréstimo, semana que vem eu venho pegar, não precisa pressa para ler.
Dona Gilda acha graça nos modos do garoto.
— Esse menino está com coisa. Acho que está querendo te namorar, Darlene. — Brinca com a filha, que nem pensa nisso.
— É um bobo, isso sim! Na escola me amola o tempo todo.
Os dois refazem as contas, resolvem os problemas fracionários e Daniel tem de ir embora. Num gesto de cortesia Darlene oferece-lhe um copo de refresco que ele aceita, mais para ficar alguns momentos com ela do que por estar com sede.
— Olha, Daniel, tenho aqui uma coisa de que você vai gostar. Este bloquinho de notas. É bom para fazer rascunho na aula.
É um bloco de papel impresso usado por seu pai na loja de tecidos.
— Uai, mas tá novinho, não foi usado!
— É sim. Papai não usa mais esses bloquinhos. Tem muito aqui em casa.
Daniel fica feliz. Nossa, se ela está me dando este bloquinho, é porque gosta de mim. Por alguns momentos fica sem falar nada extasiado com a conclusão a que chegara.
— Acho melhor você ir. Sabe, tenho que me preparar, hoje de noite tem a festa da chegada dos soldados. Você vai?
— Chííí, tinha me esquecido. Claro que vou. Quem sabe a gente se encontra lá, hein?
Que garoto enxerido! — Pensa a menina ao fechar a porta após Daniel sair.
Darlene estava entre o pai, seu Elias Gandra, e a mãe. De mãos dadas. Não sendo uma garota pequena, amiudava-se quando ficava perto dos pais. Estavam na estação da estrada de ferro, misturados com a multidão aguardando a chegada do trem. A cidade toda estava preparada para aquele evento: a volta dos quatro combatentes na Segunda Guerra, os jovens que tinham ido lutar na Itália e que voltavam vitoriosos, cobertos de glória. O Prefeito mandara enfeitar as ruas com arcos feitos de madeira e tecido, ao estilo dos arcos do triunfo que vira nas fotos das revistas. Discursos diversos tinham sido preparados: o prefeito, o Cônego Lampedosa, o delegado de polícia, o chefe dos escoteiros, todos iriam enaltecer os feitos de heróis da cidade.
A composição das vinte horas estava atrasada. A ansiedade tomava conta da multidão. Darlene levantava-se na ponta dos pés, para olhar por cima dos ombros à sua frente. Seu Elias espairecia o olhar do alto de seus dois metros sobre a multidão. Há gente por toda a plataforma da estação e até além, ao longo das margens do trilho. Também do outro lado dos trilhos, no barranco defronte à plataforma, gente descuidada se amontoa, com grave risco de escorregar e cair sobre os trilhos. Uma algazarra sobe do povo.
— Lá vem o trem! Já tá chegando! — Seu Elias vê longe e vai informando à mulher e à filha.
Ouve-se o apito da locomotiva. A multidão se agita mais ainda. Darlene procura ver porém o trem ainda está longe. Mas num relance ela vê, do outro lado, no barranco, segurando firmemente em um arbusto, a figura magricela de Daniel de roupa nova. Daniel também a vê e por instantes os olhares dos dois se cruzam. Há mais do que coincidência no encontro dos olhares, há mais do que surpresa entre os dois. Uma energia cruza o ar, um magnetismo circula entre os dois, antes que a locomotiva, barulhenta e ponderosa, se interponha entre os dois coleguinhas.
Descem os heróis. Entusiasmo geral. Os parentes são os primeiros a abraçarem seus queridos, depois as autoridades tomam conta dos ex-combatentes. Começam os discursos. A peroração do prefeito foi breve e a oratória do cônego foi interrompida a meio pelo foguetório. Tomaram os quatro heróis nos braços, e assim, levantados sobre a multidão, foram levados pela rua afora, deste a estação até o coreto da praça principal. Os três arcos não resistiram ao vigor da multidão, desapareceram quando o povo passou por eles, destruindo-os.
No coreto, a banda atacou com dobrados e marchas militares. O delegado de polícia fez um discurso abreviado pelos “vivas!” da multidão. Todos queriam estar mais próximos do coreto. Muita gente e as pessoas se empurravam.
Daniel tinha vindo de roldão, acompanhando a multidão. Desde o momento em que vira Darlene só pensava em chegar perto dela, falar-lhe algumas palavras. Empurra daqui, esgueira dali, procura acolá, não conseguia mais ver a colega. Após muita suadeira e diversos pisões nos pés chegou perto do coreto. A banda tocava com entusiasmo. Os sons dos instrumentos muicais se misturavam aos “vuvas” das pessoas e aos estouros dos dos foguetes. Foi ele quando viu de novo a menina. Quase encostada no coreto, entre a mãe e o pai. É agora que vou conversar com ela! Vai ter que ser no grito, tá uma barulheira do cão. Foi-se aproximando com cuidado. Queria falar com Darlene, mas, ao mesmo tempo, não queria que seu Elias e dona Gilda o vissem. Não vão gostar de me ver conversando com ela. Mas, conversar como, com esta barulheira?
Darlene pressente a chegada do colega. Olha pra trás, e surpreende Daniel, ali, junto dela. Os pais estão atentos ao discurso, não percebem o encontro momentâneo. Daniel arregala os olhos, percebendo que não tem nada a dizer a Darlene. Mas não vou ser besta, ficar calado. Deu tanto trabalho pra chegar até aqui. Entre surpreso e destemido, só lhe ocorrem algumas idéias bobas. E num momento de extrema audácia gagueja:
— Darlene, cê quer namorar comigo?
Não espera reposta. Vira nos pés e desaparece na multidão.
Daniel ficou até no último momento na porta da escola, esperando tocar o sinal para a entrada nas salas de aula. Chegou pretendendo estar afobado e foi direto para sua carteira, sem olhar pra ninguém — muito menos para Darlene. As aulas se arrastaram até a hora do recreio. Ele estava nervoso, inquieto, pensando nas conseqüências de sua atitude na noite anterior, na sua pergunta. Ela de certo tinha contado para o pai, para a mãe, até para dona Marocas. Daqui um pouco vou ser chamado na diretoria, vou ter de explicar tudo. Vão chamar meu pai, minha mãe. Posso até ser expulso do grupo, vou perder o ano, o diploma. Durante o recreio não se mistura com os colegas, fica isolado num canto, debaixo da enorme magnólia que debruça seus galhos sobre o muro.
Voltando à sala de aula a tortura do silêncio continua a atormentá-lo. Deve ser no final da aula, quando for sair, vão me espremer, vou ter de confessar. Acho que vou fugir antes de terminar a aula. Mas, como? Nem por um instante levanta os olhos da carteira. Finge ler, estudar. Olhar para Darlene, então, nem pensar! Ah, já sei. Antes de terminar a aula, vou pro banheiro e fico lá até tocar o sinal da saída. Saio depois que todos tiverem ido embora.
Assim fez. Escutou o tropel de todos saindo da escola, e quando tudo silenciou, foi para a sua carteira, a fim de pegar seu material e sair correndo.
Ao entrar na sala, um susto! Darlene estava lá, sentada na sua carteira.
— Oi, Daniel! Quero te perguntar uma coisa.
Daniel treme. Nenhuma palavra sai de sua boca seca.
— Sabe, ontem de noite, você falou alguma coisa lá perto do coreto. Mas tinha muito barulho, não escutei nada. Que era mesmo que você queria me dizer?
ANTONIO ROQUE GOBBO-
Belo Horizonte, 1-maio-2001-
conto # 88 da série Milistórias