Molho de Chaves

A chave prateada e arredondada abre a porta do quarto. Foi lá que ela quebrou o vaso quando eu disse que estava cansado demais para discutir sobre nosso relacionamento. Ela se queixava do tempo em que eu passava no escritório, mas eu não podia deixar tudo que construí ir por água abaixo.

“Mas você também construiu esse relacionamento, porra!” ela gritou e jogou o vaso - um Porto Brink arredondado que foi presente de casamento – na parede, sentou na cama e chorou.

A chave dourada e longa abria a porta dos fundos. Eu entrei por ali no nosso terceiro ano de casados. Eu me escondi até ela ir à cozinha e entrei sorrateiramente com um buque de rosas e duas passagens de avião. Espalhei as pétalas na cama, fiquei nu e cobri meu pênis com as passagens. Eram passagens pra Alemanha, país importante pra ela, já que seu avô nasceu e morreu lá. Ela sempre quis conhecê-lo. O avô. E o país também.

Ela sorriu e chorou quando me viu.

Nós transamos em cima das pétalas.

A Chave Phillips interna de metal maciço abria a porta do banheiro. Ela se trancou lá quando descobriu que eu a traía. Eu tentei me justificar dizendo que eu não recebia mais a atenção dela, que ela sempre me deixava no escuro e essas idiotices que achamos que fazem sentido. Ele me disse que isso não era desculpa e que eu tinha jurado nunca mentir para ela.

Ela estava certa.

Ela se trancou no banheiro e eu saí pra fumar.

Não voltei para casa naquele dia.

A chave escura e trifásica abria o portão. Eu lembro que um dia chegamos bêbados de uma festa de carnaval – o primeiro que passamos juntos como marido e mulher – e ela me chupava no banco da frente. Eu fiquei tão excitado que a endorfina se misturou ao álcool e eu acidentalmente pisei no acelerador ao invés do freio e acabei arrebentando o portão. Por sorte, nenhum de nós se machucou seriamente. Mas ela mordeu o meu pênis com o impacto. E nós contamos isso aos nossos amigos com um sorriso idiota no rosto alguns dias depois.

A chave grande e pesada abria a porta do escritório. Eu me escondi lá por meses com medo de ter uma conversa séria com ela. Ela tentava algum tipo de diálogo e eu logo me afastava. Tinha medo de perdê-la e medo de falar abertamente sobre meu erro. Tinha medo de me desculpar. E vergonha de olhar nos olhos lindos e brilhantes que antes mostravam amor e hoje mostravam tristeza.

Eu me trancava no escritório e passava noites olhando a tela em branco do computador.

A chave menor, serrilhada e enferrujada abria a porta do pequeno baú que escondia nossas lembranças. Lá dentro havia fotos de todas as nossas férias. De todos nossos amigos. Dos familiares que amávamos. Do cachorro que morreu atropelado. Do cachorro que morreu envenenado. Do cachorro que ainda estava vivo e se chamava Ulisses. Fotos de quando pintamos a varanda. Fotos na piscina recém construída. Guardava também nossos pequenos recados de amor que pendurávamos na geladeira um para o outro. Guardava nossas primeiras cartinhas de namorados, nossos poemas cheios de amor e certeza.

E hoje depois de dois dias que ela foi embora, depois de dois dias que ela fez as malas, me olhou nos olhos e disse que estava partindo, eu reabri o baú. No fundo, com um laço roxo havia um envelope vermelho com a data do nosso aniversário de casamento, que seria daqui a dois dias.

Dentro do envelope havia uma foto.

Uma foto em preto e branco com um triângulo preenchido com estática. Demorou algum tempo até eu me dar conta do que era aquilo.

No verso estava escrito: “Pra nos juntar depois de tudo. Afinal, somos eternos” e uma carinha sorridente.

Ela se foi e eu nem sequer tentei impedi-la.

Ela se foi e nós não somos mais eternos.

Ela se foi.

E tudo que eu tenho agora são as lembranças.

Esse baú.

E esse molho de chaves.

Marcus Stanley
Enviado por Marcus Stanley em 25/03/2014
Reeditado em 09/02/2017
Código do texto: T4742675
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