SÁ FULGÊNCIA

Não houve um dia, uma hora determinada. A demência foi-se instalando gradativamente na cabeça de Sá Fulgência, de tal forma que ninguém, na pequena cidade, saberia dizer quando começaram as doidices da velha senhora. Uns dizem que foi por ocasião da guerra; a mulher ficara baratinada com a notícia da morte do filho único na batalha de Monte Castelo. Outros dizem que ela sempre fora desequilibrada e que a idade tratou de fazê-la doida de pedra.

Morava numa meia-água na Ladeira do Sabão, aglomerado de casinhas e barracos pelas bandas do Matadouro. Sozinha desde a viagem do filho. Nunca se referira à perda do rapaz, ele continuava viajando.

Vivia de esmolar. Todos os dias andava pela cidade, de um extremo a outro, pedindo aqui e ali e comprando, na volta, o pouco de mantimento para sua subsistência. Ganhava roupas, muitas roupas, pois era sempre caprichosa no vestir. Caprichosa demais. Gostava de vestidos coloridos, que usava sempre com lenços floreados. Na cabeça, um incrível turbante cor de laranja desbotado pelo uso constante. A figura exótica e vistosa tinha um quê de cigana misturada com Carmem Miranda. Sofrera um derrame que, naqueles tempos difíceis, era registrado como estupor. Tinha a boca torta e era completamente banguela. A pálpebra direita não tinha movimentos e o olho era fundo, como se tivesse sido furado.

Calçava alpargatas de sola de corda, que eram lavadas constantemente e estavam sempre limpinhas, apesar da poeira ou do barro da Ladeira do Sabão. Era alegre. Por mais exótica que fosse sua figura, Sá Fulgência nunca recebera apelido, coisa rara na localidade, onde todo mundo, principalmente os excepcionais, tinha apelidos. Com ela, não. Era Sá Fulgência e pronto. Andava por toda a cidade e era ajudada por muita gente. Talvez pela sua figura colorida, seu bom humor, e, principalmente, pela sua obsessão.

— Tou procurando um home rico e bunito pra casar. Num demora, acho meu home.

Não tinha história, ninguém sabia quem era o pai de seu filho morto na guerra. Sua origem era desconhecida, embora alguns maledicentes dissessem que ela tinha sido artista de circo. Outros falavam dela como antiga mulher-da-vida. Mas ninguém podia assegurar nada sobre a vida pregressa de Sá Fulgência.

Ava, Eva e Iva eram conhecidas como “as meninas do Major Gilberto” e viviam de fofocas. Jamais se vira uma tríade de moças tão dedicadas às especulações das vidas dos habitantes de São Roque de Minas. A família era remediada. O pai era fazendeiro de cinqüenta mil pés de café e uma centena de vacas leiteiras. Nunca fora militar, a patente de major era ficção, mas ele fazia questão de ser tratado como se militar fosse. Para a família exigia o que fosse melhor. E o melhor, para as “meninas”, tinha sido o estudo no colégio das freiras, que terminava com o curso de normalista. Formadas, ficaram aguardando seus príncipes encantados. Enquanto esperavam, moças feitas, sem trabalhos nem obrigações, fofocavam.

Ava, a mais velha, estava na casa dos trinta. Uma solteirona. Linda moça, morena de olhos verdes, traços finos e delicados, educada no trato com as pessoas, era a líder da irmandade nos comentários viperinos que atingiam todos os habitantes da cidade. Eva e Iva eram gêmeas, três anos mais moças que Ava, à qual obedeciam como vassalas. Ao que aprenderam no curso de normalista nada mais foi acrescentado. A mãe era um zero à direita, apagada completamente pela personalidade do major. A única idéia que vicejou na cabeça das moças fora plantada pelo pai.

— Filha minha só casa com doutor ou deputado.

E assim, elas esperavam, como personagens de histórias da carochinha, a chegada de seus pretendentes. Nada liam, ouviam doces novelas da Rádio Nacional, freqüentavam o cinema e a igreja com igual devoção e bisbilhotavam a vida dos pacatos habitantes seus concidadãos. Ah! Sim, iam também aos bailes do Clube Social, apesar de condenados pelo Padre Ranzinze. Era o único pecado de que se acusavam no confessionário, logo na semana seguinte.

Assim passavam os dias. Y asy se passaran diez años, como cantava Gregório Barrios, fazendo sucesso e despertando suspiros das moças casadoiras.

O velho Tomazio Lamberto , pai de onze filhos, colocou no caçula toda a esperança de ter um filho formado. Lutara bravamente para sobreviver com sua pequena sorveteria. Os filhos tiveram de aprender ofício e trabalhar tão logo terminado o grupo escolar. Os mais velhos, Genaro e Giovanni, sequer concluíram os quatro anos do primário. Partiram cedo para a luta da vida.

— Ma mio Pepino va studare, sarà dottore.

Pepino era como costumava chamar César. Irrequieto, sagaz e muito ruivo, o tratamento carinhoso do pai lhe assentava bem como apelido. Mas foi Pepino só na meninice. Quando saiu de casa para estudar na escola de medicina da capital, o velho Tomazio, esfregando as mãos no avental branco que usava esticado sobre a enorme barriga, mudou drasticamente o tratamento do filho.

— Si, mio figlio Cesarino fa la universitá. Presto sarà medico.

E quando voltou formado,o diploma na mão, o velho quase estourou de orgulho. O sucesso do filho era também seu. Construiu para o médico uma pequena casa com consultório no terreno ao lado de sua sorveteria, tudo na praça principal .

— Il dottore Cesare assistere nello gabinetto por le matine e nello hospitale dopo il mezzogiorno. — Informava a quem lhe pedisse informação sobre o consultório do filho.

Interessante como Tomazio evoluiu no tratamento do filho: de Pepino passou a chamá-lo de Cesarino e agora, enfatizava quando dizia dottore Cesare.

Doutor César firmou-se logo na profissão. A precisão nos diagnósticos e o carinho com que tratava a todos, no seu consultório, no hospital ou em visitas domiciliares, proporcionaram rapidamente fama e clientela numerosa ao jovem médico.

Na época em que o clínico geral era indispensável à comunidade, o doutor César, tão logo se instalou no seu consultório no centro da cidade, viu-se assoberbado pela demanda dos seus serviços. Em pouco tempo no exercício da profissão, não tinha tempo para mais nada além do trabalho. De manhã à noite, trabalhava incessantemente. Praticamente só saía de seu consultório para visitar pacientes e ir ao hospital, onde atendia os internados e assistia os colegas nas cirurgias.

Vida social, nem pensar. Não freqüentava o clube, não ia ao cinema nem aparecia na praça para encontrar com amigos e colegas. Viciado no trabalho, dedicava seus momentos de descanso à leitura de livros e revistas médicas. Tornou-se um misantropo. O que foi uma pena, no imaginário das moças da cidade, todas empenhadas em conseguir um bom casamento.

— Ainda vou conquistar o doutor César. Imagine, um solteiro daquele tipo, lindo e elegante, não pode ficar sozinho, não! — Ava confessava-se apaixonada pelo médico e queria levá-lo ao altar.

— Ora, minha querida irmãzinha, você já está passada. Quem vai conquistá-lo sou eu, pode escrever. — Eva brincava com a irmã, mas no fundo mantinha seus sonhos românticos, no quais ela e o doutor subiam ao altar, a igreja repleta de convidados para o casamento. Entretanto, não havia maneira de tirar o médico de sua seriedade e quebrar o gelo. Nem mesmo através de alguns falsos chiliques simultâneos, quando todas as três foram atendidas pelo celebrado médico.

— Estão bem de saúde, são apenas “coisas da idade”. — Foi o diagnóstico, que, além de preciso, vinha impregnado de fina ironia.

Mas a natureza fala mais alto e eis o sério doutor César freqüentando a casa de Maria Fogaça, no final da Rua dos Amores, onde se engraçou por Loura-Jane. Sua preferência pela bela prostituta não atrapalhou em nada sua atividade profissional, já consolidada na ocasião em que passou a “visitar” Loura-Jane. Mas as moças, principalmente as três irmãs, não se conformavam.

— Não acredito! — Ava era a mais interessada, e por isso mesmo, a mais aborrecida com o doutor César. — Imagine só, o “lindo” freqüentando a zona. Não é possível!

— Dizem que ele falou que aqui na cidade não tem moça à sua altura. — Iva punha mais lenha na fogueira. — É o cúmulo do convencimento, não é mesmo?

Ou porque o doutor César fosse tímido, ou porque fosse mais prático, não passou muito tempo e o médico tirou Jane da casa de Maria Fogaça. Montou casa para a prostituta, que passou a ser de sua exclusividade.

— Isto é uma afronta! Não vamos ficar quietas com essa vileza do doutorzinho! — Eva também ficara muito ofendida. — Temos de fazer qualquer coisa, mostrar nossas garras. Arrrrrrgh! Vou arranhá-lo todo com minhas unhas afiadas. Rrrraú! — Rebolava pelo quarto, com suas ameaças felinas. Imitando a Mulher-Gato

As três botaram suas curtas inteligências para trabalhar e vingar-se do Dr. César. Bolaram um plano complicado, demorado.

— Vamos botar a Sá Fulgência na cola do doutor. Ele vai ver o que é bom pra tosse, desprezar a gente assim, de modo tão baixo. — A idéia partiu de Eva, que teve imediata aprovação de Ava e concordância passiva de Iva.

Partiram para a ação. Não foi preciso muita conversa com a desequilibrada para convencê-la de que o doutor César era a paixão da sua vida e vice-versa. Ao mesmo tempo em que a doutrinavam, passaram a fornecer à maluca, colares, brincos, pulseiras e anéis, tudo da pior qualidade e de muito mau gosto. Sá Fulgência passava horas e horas por conta das três irmãs, que a enfeitavam como se enfeitassem uma boneca, com roupas horríveis, os balangandãs exóticos, a cara pintada (não maquiada, mas literalmente pintada). Arranjaram-lhe um par de sapatos de saltos escandalosamente altos, uma bolsa divertidíssima nas cores amarelo, lilás e verde e acrescentaram enfeites no turbante. Enfim, transformaram Sá Fulgência num verdadeiro estupor, com a cabeça cheia de caraminholas.

A princípio, era só aos sábados pela tardinha. Depois de enfeitada, Sá Fulgência era despachada para a praça central. Toda empetecada, a maluca desfilava por entre o pessoal que por ali flanava. Imbuída de seu papel de namorada do doutor César, não se pejava de perguntar a uns e outros:

— Ceis viram meu namorado por aí? Sim, o doutor César! Está gamado por mim. Marquei encontrar com ele aqui no jardim, mas ele tá demorando tanto...

Ficava muito tempo defronte o consultório, fechado àquela hora. Tocava a campainha e por vezes ia até a sorveteria do velho Tomazio, indagar de sua “paixão”. Por diversas vezes o italiano ficou brabo com a louca, escorraçando-a de seu estabelecimento, até que ela desistiu de voltar à sorveteria. Mas permanecia pelo entardecer e continuava quando a noite chegava. O footing ao redor da praça ficava movimentado, e Sá Fulgência se pavoneava no meio da multidão, sempre procurando pelo namorado e dando notícias de seus supostos encontros, de seu romance imaginários com o ilustre doutor.

Tanto a louca como a três irmãs gostaram da armação. Para a louca era uma aventura, uma realização, ter um tal homem, lindo, rico, famoso, como namorado. Para as moças foi uma vingança, tanto mais cruel quanto mais Sá Fulgência assumia seu papel na farsa. Não passou muito tempo e Sá Fulgência tomou a iniciativa de ir ao consultório do doutor em horário de atendimento, ou procurá-lo no hospital. A situação foi se tornando incômoda e até inconveniente.

A mentecapta descobriu (ou lhe indicaram) a casa da amante do doutor e tomou a iniciativa de passar, do modo provocador, pela calçada defronte. Loura-Jane não gostou e numa dessas ocasiões partiu para o confronto com a maluca. Resultou numa briga com sopapos, palavrões, cabelos puxados e roupas rasgadas. Sá Fulgência fugiu gritando rua afora e Jane recolheu-se manquitolando.

— A mulher está completamente louca, você tem que tomar alguma providência. — Como a refrega fora à tarde, o doutor só ficou sabendo do fato à noite e de acordo com a narração da companheira.

— Calma, Jane, ela é louca-mansa. Não tem culpa de nada. Encheram a cabeça dela. Sei quem está por trás disso tudo.

— Mas eu não agüento esse desaforo, não, César. Se você não fizer nada, EU vou fazer.

O médico deixou o assunto esfriar. Sá Fulgência ficou por algumas semanas recolhida, se recuperando da sova. As irmãs viram que a brincadeira tinha ido longe demais e resolveram dar um basta na armação.

Tarde demais. Quando voltou a circular pela cidade, Sá Fulgência era outra. Completamente descuidada consigo mesma, não se incomodava mais com o asseio pessoal nem com nada. Ensimesmada, triste e claudicante, seguia pelas ruas, não prestava atenção, trombava com pessoas, um verdadeiro farrapo humano. Contudo, era tomada de uma fúria verbal quando passava defronte o consultório do médico.

— Cachorro! Me trocando por aquela branquela! Disgraçado, nunca mais quero nada com você, seu viado! — Gritava do outro lado da calçada, na praça, agitando os braços em gestos ameaçadores. — Vai queimar no inferno. Corno! A branquela te põe chifre!

— Xiiiii! Sá Fulgência pirou de vez. — Comentário de Marina, a atendente do consultório do médico.

— Que algazarra é essa aí? — Pergunta o doutor, sem sair de seu gabinete de consulta.

— Sá Fulgência ficou louca mesmo. Devo fazer alguma coisa, doutor?

— Não, deixa. Isso passa e ela vai embora.

O doutor se enganou: a louca foi ficando cada vez pior. Num desses surtos, Marina toma a iniciativa, telefona para o Hospital, pede uma ambulância para recolher a maluca, que insiste em gritar, bem defronte à porta do consultório.

Alguns minutos a seguir, lá vem a ambulância. Com a urgência a que está acostumado a atender chamados de emergência, Juca, o motorista, afunda o pé no acelerador, atravessa ruas e cruzamentos, confiado no estridor da sirene ligada na altura máxima, chamando a atenção dos transeuntes. O veículo chega à praça e Juca dirige diretamente para o consultório do médico.

Sá Fulgência, num instante de lucidez, percebe que algo de ruim está para lhe acontecer. Tenho de fugir, os homes vêm me pegar! – Pensa a maluquinha, enquanto salta da calçada, no intento de atravessar a rua e fugir pelo jardim afora.

Inútil tentativa. Juca só percebe o vulto da mulher quando ela cruza com o veículo. Não tem tempo para frear ou desviar o carro. Ouve o som cavo do corpo sendo atingido, jogado de volta à calçada. Só então consegue deter a ambulância. Abre a porta e corre para a frente do veículo. Ao chegar, já encontra Doutor César tentando levantar a mulher. Há sangue nas roupas, no chão, na grade e no capô do motor da ambulância. A mulher estertora nos braços do médico. Juca agacha-se e ouve as últimas palavras da infeliz:

— Ai, meu filho! Cê demorou... mas cê voltou...

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE – 5.ABRIL.2001

Conto # 84 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/03/2014
Código do texto: T4740277
Classificação de conteúdo: seguro