Você, nota Dó

Hoje espantei-me.

Um pavor repentino quando peguei a caneta e o papel em branco me encarou de volta desafiador.

Clima ameno e o calor insuportável do Verão, que já ia se retirando pela culatra do vento tímido de Outono. O silêncio amplifica as minhas idéias, como se elas pudessem se comunicar comigo sonoramente. Sabor de excitação na boca. A maciez do meu colchão por baixo do meu corpo. Olhei pro canto do quarto e pude ver o gato dormindo tranquilamente. Sorri e voltei a atenção ao meu mundinho particular e para a guerra que eu travava comigo mesma.

Nada nascia daquela composição à minha frente e a folha começou a se movimentar delicadamente, quando tocada pelo vento discreto, como em protesto pela demora. Provavelmente queria demonstrar condolências por essa mente inquieta que não conseguia organizar seus pensamentos, disparates insanos, satisfação fugaz, rupturas recentes.

A grande verdade é que de todas as criações coloridas, trilhas sonoras, textos motivadores e desatinos controversos que minha imaginação quer criar, ela escolheu falar de você.

E eu que prometi que dessa vez não escreveria sobre, bebi um gole do café amargo que deixo no criado-mudo antes de rasgar a folha.

Pela enésima vez rasgo a folha.

Me dê qualquer tema que eu escreverei. Fome? Guerras? Dissoluções políticas? Você...

Você de novo!

Arquejo de desaprovação, rasgo a folha, pego a próxima.

Não vou lutar contra o relance da criação que surge diante de mim. Não sigo métrica, nem pauta. Não tenho tema. Bebo mais um gole de café, fecho os olhos. Quando os abro novamente e como num passe de mágica, começo a escrever.

Caneta e papel se tornam um. Excelente parceria com exata sincronia. Quase movimentos peristálticos, dando forma a letra, ora arredondada de ternura, ora fora do padrão pela excitação.

Vai parecer clichê falar da saudade, das nossas risadas, do seu toque, sua voz macia, seu olhar profundo e da sensação de completitude que você me traz. Vai parecer chato, repetitivo e você pode até se cansar de ser a eterna nota DÓ da minha canção particular.

Eu juro, eu tentei não escrever sobre você, nem pra você dessa vez. Mas não adianta desviar o assunto da mente quando a inspiração vem do coração.

*Baseado na música "Monomania", de Clarice Falcão