Direito de amar
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Minhas mãos sangram e lágrimas escorrem por entre meus dedos. Tenho o coração aberto, exposto ao sabor da ilusão, e a tessitura de cada uma das palavras que escrevo está repleta de angústia. Também tenho medo. Medo do que sinto e, mais ainda, apavora-me o que tenho feito, na tentativa de externar meus sentimentos. A exposição da pele e a extirpação do músculo cardíaco que agoniza, suplicando o direito de amar, fragilizaram meu corpo; minha alma, que redescobriu o amor, não sabe que destino seguir; e meu coração, sangrando em minhas mãos, ainda pulsa... Acariciado, ele bate, implorando por socorro.
Desmaterializei-me e viajei no tempo, visitando amores mortos que se tornaram eternos. Revi semblantes pueris, choros indescritíveis, lamentos, tragédias. Senti a dor de separações gestadas no ódio – o amor entre os filhos não venceu a dissensão dos pais, que absurdo! O olhar distante, a busca no vazio, a sensação de morte... Eram olhares plúmbeos, de amores apartados, de almas que se tocariam apenas no além-vida, para muito além dos túmulos.
Katheryne Louis está sentada. Perdeu a noção de pertencimento. Igor Iloah, o amado, está morto. Três tiros disparados por Arturo Louis, pai de Katheryne. Ela rememora o primeiro olhar, o primeiro beijo, o toque que antecedeu o esvoaçar da menina que deixara de ser – foi nos aconchegantes e protetores braços de Igor que entendeu que o amor carece de interpenetrações, de contato e de atrito. Recordações, apenas. Abraça-se – os frágeis braços buscam o que ainda resta do agora impossível novo toque, mas o aperto não é suficiente para desanuviar a ausência. Ela chora e se ressente da vida, da brevidade do tempo. Desobedeceu, transgrediu, mas aproveitou. Amou por instantes, isso é fato: amou. Recorda-se do espanto, de como se sentiu feliz ao vislumbrar o sangue da ruptura, transição entre o entendimento pueril de menina e a consciência da amadurecida mulher que floresceu... Quer levantar-se, seguir caminho, mas se mantém inerte, envolvida pelo próprio abraço.
Turbilhão de amores. Os gritos e o terror das incontáveis partidas estão me ensurdecendo. Pareço delirar. São assombros multilíngues que reverberam dentro de mim, todos eles traduzidos por minha percepção. Não sei o que dizem, não decodifico todos os códigos. O que me revelam as feições e o terror de cada aflição dispensam traduções, pois que a alma, quando fala, expressa-se diretamente ao transcendente da matéria. Mais gritos. Mais gemidos. Os braços de Katheryne foram cortados pela velocidade do tempo que insiste em me sugar para dentro dele, retroativamente.
Estou entre mundos. Tenho percepções dualistas e a doce sensação de poder livremente transitar entre realidades. Vejo a rudeza da matéria perecível e me encanto com a miríade das almas. Tons de branco, de azul, de prata, de preto – Nossa! Quase me cega o furor do negro olhar de um contendedor. Talvez não nos conheçamos, mas naquele olhar existia carma, resquícios de ódio, dívidas inadimplidas. Quase nos atacamos, nossos olhares nos entorpeceram as almas. Ele quis me tocar. Inútil. A possibilidade do toque me fez regressar ao ponto de partida. Meus dedos estão trêmulos, a respiração ofegante, o sangue parou de escorrer e meu coração, acelerado, pulsa e fibrila. Toque, a necessidade do toque.
Temos o direito de amar, direito universal. Ontem foi assim. Amanhã também... Hoje, justamente agora, percebo que o presente contradiz os dois outros tempos verbais. Não tenho o direito de amar! Ou não posso amar direito, da forma que sonho. Precisamos amar direito para termos o direito de amar? Reencontrei amores perdidos, sonhos destroçados, desesperanças e muito sofrimento. A consternação da ausência, a impossibilidade de novos beijos – a imagem de Katheryne é persistente e recalcitra dentro de mim. Cabisbaixa, esquiva e divagando sobre como poderia ter sido se o tempo não tivesse, caprichosamente, obliterado o contato. A falta da tangibilidade, a realidade do amor que somente se completa quando a dois, no calor dos corpos entrelaçados, majorando a completude das fantasias, talvez iniciadas num tempo passado que revisitei até retornar, temendo o toque do meu rival, era tudo o que Katheryne cobiçava, mas o que são nossos desejos quando a vida nos apresenta outros planos? Infelizmente, muitos dos nossos anseios esbarraram no medo de tentar. Para Katheryne, tentar não adianta mais.
Como entender o amor... Milhões de almas dariam tudo por um toque. No mundo existem bilhões de pessoas. Outros milhões fugiriam do contato? É possível amar e prescindir do olho a olho? Na viagem que fiz, superei tudo: gritos, alucinações, desesperanças, enterros, partidas, guerras, maldições... Não titubeei e me mantive firme, viajando para longe de mim, sem sobressaltos. Entretanto, o olhar voraz daquele homem, de nuances pretas, foi suficiente para me estremecer – a verdade dos olhos me arrebatou! Nenhum gesto foi tão significativo quanto aquele olhar. Estranho, mas não houve toque. O ódio consegue instalar-se assim, sem contato. O amor, entretanto, pede singeleza, ponta de dedos que se atraem por força de campo, magnetismo que acende tudo, expondo sentidos e nos diferenciando da imaterialidade. O amor pede o toque. Toque-se! Descubra-se. Depois, revele-se para o outro, permitindo-se a verdade doutro olhar para dentro dos seus olhos.
Quero ter o direito de amar. Quero ter o direito de olhar. Quero ter o direito de tocar. Quero ter direitos! Sinto uma presença, não estou sozinho, e me percebo divagando até você. Seu corpo de pele branca, nunca tocado pelas minhas mãos que voltaram a sangrar, esconde-se por detrás de singela calcinha amarela... O amarelo da riqueza, do ouro, mas, também, da melancolia. Sinto pulsações, dois corações: um que diz que me ama; outro que diz que me quer e me deseja. Este pulsa, sangra e goza. Aquele, apenas pulsa, alimentando tudo em você. Tenho medo, o temor permanece e, mais ainda, apavora-me o que faria se externasse meus sentimentos. Exporíamos nossas peles, aceleraríamos nossos corações e a única súplica permitida seria o colapso do tempo, no exato instante do congraçamento corporal, porque nossas almas já se tocaram faz tempo – percebi isso quando viajei, antes daquele olhar certeiro que me fez retornar.
...
Katheryne teve o direito de amar um amor que morreu. Perdoa-se. O imperdoável é matar, por medo, o próprio amor que nasceu.
Nijair Araújo Pinto
Iguatu-CE, 26 de fevereiro de 2014.
22h35min
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