Café Sem Leite

Há muito tempo sonhava ter uma plantação admirável como a de meu avô. O tempo passou e com ele, as coisas foram indo junto. Não sei por quanto tempo vou ter que dar minhas jóias para que o tempo finalmente sacie-se. Minhas uvas parecem olhos me julgando por remoer tudo que perdi e me convencendo a me dar por perdido. Antes eram cores alegres refletindo todo o sol que nelas incidia em meus olhos. Pensava o quão mais orgulhoso poderia ser de vê-las felizes. Ver as uvas, as flores, a família e à mim felizes à cada cantar do galo.

Mas sinto saudade. Saudade é além de um sentimento, é um estado de espírito. Só que dói. Por mais egoísta que soem as palavras, tenho saudade de mim. Daquele jovem sonhador com o mundo na palma da mão, sorridente enfrentando o vento de peito erguido.

A vida era um grande sonho, amadurecia a largos passos com a certeza do futuro próspero. As verdades absolutas nunca me convenceram, pareciam provocar-me como quem chama para um duelo. E geralmente perdiam. Minha verdade era a mais dura pedra e se fortalecia com a água mole. Tem lógica? O futuro se misturava com o presente sem nunca esquecer do passado e os três juntos eram como escoteiros unidos pelo mesmo ideal, imbatíveis, invencíveis e em harmonia.

À porta da visão dos olhos, o futuro se fez. Trouxe consigo as vontades mais íntimas, os desejos mais profundos e o orgulho do garoto que o fez e agora é um homem.

Ao olhar a bancada de minha mesa, vejo um casal feliz com sua filha em um porta retrato que ganhei no casamento. Consigo ver nos olhos dele a satisfação de missão cumprida, como um militar e seus méritos no peito.

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Acho que o café não me fez bem, meu estômago dói. Já fiquei muito tempo aqui, isso deve ser um sinal para ir embora. O trabalho tem me exigido muito e essa porcaria não funciona se eu não estiver por perto. Será que saudade dá dor de estômago? Sei que me dói as lembranças de dias como esse em que ia como um raio para casa, louco para ver minha princesa antes de ela dormir. Sempre em vão. O contentamento todos os dias era me despedir com o mais sincero beijo de ter tentado, apesar de falhado. Só que hoje, sua cama está vazia. A minha também, fria, sombria, como um quebra-cabeça sem as peças do meio e a companhia apenas do vento na janela. O jeito é tomar mais café, ou de repente voltar a misturar com leite, como ensinei minha filha, e culpar-me como de costume. Não, sem leite. O gosto adocicado demais, hoje, me enjoa.

Lembro que minha garotinha adorava brincar embaixo da mesa do escritório. Depois que cresceu se acostumou apenas com um bom dia. Não precisava mais de mim como antes, ou talvez eu que me fiz desnecessário. Minha esposa tentava saber sobre o meu dia de trabalho, mas eu nunca conseguia contar de forma interessante. Devia ter contado com mais vontade, ela queria escutar. Apesar de tudo, devaneios de loucura me iludem que estão lá, ou que estão aqui. Pena ser mentira, a impressão de estarem por perto me trás rara paz.

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Negligente! Sonhador barato! Valores invertidos, trocados, perdidos, traficados e subornados.

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Quando um ignorante pronunciava que aqui se faz, aqui se paga, eu ironizava, contraindo minha testa e lábios, sentindo-me superior às leis naturais. Um idiota, aprendiz estúpido confrontando o mestre. Pelo quê devo ter trocado minha humildade? O tempo quis de mim até minhas virtudes. Um inquilino ao pé da porta reclamando o pagamento do aluguel. E meu aluguel foi ficando caro. Vai ver poderia ter procurado por algum que eu pudesse pagar.

Se eu contasse para o garoto que sonhou tudo o que hoje eu vivo, ele ficaria decepcionado comigo e frustrado com ele mesmo. Perdi tudo que amava à medida que ganhava tudo que acreditava amar. Foi uma troca injusta comigo mesmo.

Sei que me amavam e meu medo era não saberem que as amava na mesma intensidade. Dei tantas provas equívocas da veracidade do meu sentimento que até eu contesto o quanto valia para mim. Só que os meus olhos carregam o peso da culpa e a esperança de um perdão que sequer mereço.

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Amanhã tenho reunião com uns italianos e o curioso é que são da mesma cidade que meus bisavós nasceram antes de virem para cá. Isso me lembrou quando achei uma moeda incomum no vinhedo do meu avô. Corri entusiasmado e ansioso contar para ele, que ficou mais impressionado que eu quando viu. A moeda era feita de ouro com as iniciais da família gravadas. Meu avô me disse que era um jeito de passar riquezas através das gerações e que, se eu havia encontrado, eu era o grande felizardo. Senti-me como um vencedor de loteria, ou como se encontrasse o pote de ouro no fim do arco-íris. Fiquei extasiado, maravilhado, amava vê-la reluzir contra o sol.

Cuidei como um bem de rara preciosidade e mantive adormecida como um segredo de Estado, a sete chaves. Quando jovem, admirava-a e conseguia reviver o momento em que a encontrei. Lembrava de todo meu entusiasmo e o valor que tinha para mim quando criança.

Perguntava-me o quanto devia valer, já que era ouro maciço, mas não ousava tirar da caixa.

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Um dia, chegando em casa, minha filha me perguntou por quê eu sempre tinha tantas moedas no bolso quando chegava do trabalho. Brinquei que elas apareciam do nada e ela riu sem entender. Então resolvi mostrar a minha moeda se ela prometesse guardar segredo. Ela deu pulinhos jurando não contar para ninguém. Logo que abri a caixa, seus olhos brilharam junto com os meus. Instintivamente ela pegou e estranhei com certo ciúme. Contei-a toda a história e tentei compartilhar um pouco do valor que tinha para mim. Cheia de dúvidas, acabou-se em perguntas e algumas me pegaram despreparado. Quis saber o porquê de ser uma moeda, algo que nunca nem eu me perguntei, e categoricamente expliquei que a moeda era intrigante, pois tinha dois lados. Completei que tudo tem dois lados e seria um erro acreditar que só existe um. Ilustrei usando o exemplo da verdade. Não existe uma só verdade, só por que alguma coisa é verdade para você, não significa que ela seja para todo mundo.

Ela parecia penetrada no que eu improvisava para tentar explicar e isso me empolgou. Mostrei à ela que se eu jogar a moeda ao chão, só um lado estará a vista. Então quer dizer que só esse lado existe? Não, o outro lado está lá, só que você não está vendo agora. Porém, é só olhar o outro lado para descobrir que ele também existe. A espertinha perguntou, então, o que aconteceria se a moeda ficasse em pé. Disse que não haveria mais lados para ver, apesar de você ainda continuar vendo a moeda, mas que isso era impossível de acontecer, já que precisaria de um equilíbrio fora do comum. Até fez sentido a forma como dinamizei, mas não a convenci totalmente, pois escutou minha argumentação e afirmou que não é impossível a moeda ficar em pé.

Realmente não é impossível, só que a ingenuidade de criança engana-a que há probabilidade dela ver isso acontecer.

Por fim, acabei cedendo a dar a moeda à ela após sequências de "por favor" e promessas de cuidar muito bem.

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Quando ficou mais velha, disse-me que iria pô-la em um colar. Detestei a ideia, mas insistiu que, uma vez dada de presente, poderia fazer o que quisesse. Amaldiçoei seus planos, pois na mesma noite contou-me que havia sido assaltada logo ao sair. Meu misto de raiva, tristeza e decepção fez-me explodir em cima dela. Falei inverdades à respeito de seu comportamento e culpei-a de não ter me escutado. Afirmei que ela nunca soube nem nunca saberá o real valor e a importância daquela moeda.

Aquela briga foi feia, devia dar para apagar isso da própria memória. Queria ter pedido desculpa por isso, mas o bom dia bastava sempre.

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Agora não adianta, vago como um ser sem vida dentre minhas plantas vívidas. Invejo-as por viverem livres de culpa e saudade e por nunca perderem a vitalidade e beleza característica.

Tudo o que tenho são montanhas de ouro que hoje, não valem mais nada perto das boas lembranças, perdidas dentre tantas ruins. O tempo nunca quis ser meu amigo, ou será que o vilão era eu e o tempo, o mocinho tentando salvar o dia?

Hoje vivo no vinhedo que herdei de meu avô tentando encontrar aquela criança que por aqui brincava. Só que nunca mais serei afortunado com tamanha paz interna. Logo ali, foi onde encontrei a tal moeda, que ajudou a corroer a relação com minha filha.

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Mas, estranho, aquele reluzir lembra-me os dias de sol que brincava à caçar tesouros. Nunca acreditei que era um caçador de tesouros até o dia que encontrei um e mais valioso. Porém há uma luz bem ali que chama meus olhos em direção ao chão, carregada de saudade que não dói.

Não acredito no que vejo, será que estou dormindo? Será que sucumbi à loucura e cai nas tentações da ilusão? A moeda que pertencia à minha família está exatamente no mesmo lugar e meus olhos piscam tentando crer no que veem.

É ela! A moeda, na sua posição improvavelmente possível de equilíbrio. Como um milagre orquestrado, o límpido reluzir da moeda prova sua genuinidade e o cordão de minha filha pendurado proporciona a lágrima que guardei todos esses anos. O nascimento de um sonho dentro do coração de um garoto caçador de tesouros aconteceu pela segunda vez. Acredito que nunca soube o valor verdadeiro dessa moeda até o presente momento. Ela lembrou-me de todos os meus antigos valores e toda a pureza dos meus sonhos. Precisava admirá-la novamente para recordar que tudo tem dois lados e que não existe apenas uma verdade.

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Reviver esse momento restaurou o brilho nos meus olhos e a crença de que viver ainda é um sonho. Apesar dos golpes do tempo há sempre um equilíbrio me procurando. Reconheço que minhas quedas refletem minha teimosia e relutância contra o tempo que só queria ser meu amigo. Meu almejado perdão nunca precisou ser dito. Ele era sussurrado junto com a brisa na janela do meu quarto vazio, enquanto eu estava ocupado demais mergulhado em culpas infundadas para ouvi-lo.

Na cama de minha filha, descansa a moeda que te dei como prova de que o amor transcende a vida. E antes de dormir, digo com pesar de saudade boa e alívio de um sonho vívido o "boa noite" que todas as noites sussurrava no ouvido de vocês e que, por angustiantes silêncios da noite, engasgava minha garganta.

Boa noite, eu amo vocês. O beijo está guardado para depois.